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Lucas caminhava pelas ruas de volta para casa, mas não sentia seus pés tocarem o chão. Sua mente estava em outro lugar, presa na cena que acabara de viver. O gosto amargo da rejeição ainda estava em sua boca, misturado com o sangue seco no canto dos lábios. Cada passo parecia um esforço imenso, como se estivesse carregando o peso do mundo nas costas.
A imagem de Ana nos braços de Marcos, as palavras frias, o riso cruel... tudo se repetia como um eco doloroso dentro de sua cabeça. "Você é só mais um garoto sem futuro, sem dinheiro, sem nada."
A dor física do soco já não era o que mais doía. O que realmente o despedaçava era o que vinha depois-o vazio, a sensação de ser pequeno, de ser insignificante. Como ele pôde ser tão cego? Como pôde acreditar que Ana poderia vê-lo da mesma forma que ele a via?
Quando chegou à porta de casa, hesitou. Seu lar sempre fora um refúgio, mas, naquele momento, parecia sufocante. Ele não queria que sua mãe o olhasse com aquela expressão preocupada. Não queria que Sofia, sua irmãzinha, percebesse sua tristeza.
Respirou fundo e entrou.
O cheiro de café fresco preenchia o pequeno espaço da sala. Sua mãe, dona Marta, estava sentada no sofá com os olhos fixos na televisão, mas se virou assim que notou sua presença.
- Lucas! Meu Deus, o que aconteceu? - A voz dela carregava um misto de surpresa e medo.
Ela se levantou rapidamente e se aproximou, segurando seu rosto entre as mãos ásperas pelo trabalho pesado na fábrica. Seus dedos roçaram o inchaço na bochecha dele, e seu olhar se encheu de preocupação.
- Você brigou? Quem fez isso com você?
Lucas desviou o olhar. Ele queria falar, queria dizer o que havia acontecido, mas as palavras simplesmente não vinham. Como ele poderia colocar em palavras a humilhação que sentia?
Ele se afastou delicadamente do toque da mãe e balançou a cabeça.
- Não foi nada, mãe. Eu só... caí.
Ela franziu a testa, claramente não acreditando, mas percebeu que ele não queria falar sobre aquilo.
Sofia, que brincava no chão com um ursinho de pelúcia velho, levantou os olhos para ele e correu até sua perna, segurando a barra de sua calça.
- Mano, você tá machucado?
Lucas forçou um sorriso e se abaixou para abraçá-la.
- Só um pouquinho. Mas já vai passar, baixinha.
Ela apertou os bracinhos ao redor do pescoço dele e encostou a cabeça em seu ombro.
- Se te bateram, eu vou dar um soco neles também! - disse, com a voz firme para alguém tão pequena.
Lucas riu fraco, sentindo um calor breve no peito.
- Eu sei que você faria isso. Mas não precisa, já passou.
Ele se levantou e, sem olhar para a mãe, subiu as escadas até seu quarto. Assim que fechou a porta, encostou-se nela e deslizou até o chão.
O silêncio ali dentro era sufocante.
Ele levou as mãos ao rosto, sentindo o ardor da pele machucada. Seu peito subia e descia rapidamente, a respiração pesada.
O presente que ele comprara para Ana ainda estava em sua mochila. Intacto. Como se zombasse dele.
Ele o tirou de dentro da mochila e olhou para o embrulho amassado.
Com um suspiro trêmulo, fechou os olhos e jogou o presente no canto do quarto.
Nada mais importava.
A noite caiu, e Lucas permaneceu ali, sem fome, sem vontade de descer. Mas, do lado de fora de seu quarto, sua família se movia de um jeito diferente.
Ele ouviu risadas fracas e o som de pratos sendo colocados na mesa. Sua mãe e Sofia estavam na cozinha, preparando algo.
Então, escutou a voz animada da irmã.
- O bolo tá pronto, mãe! Lucas vai adorar!
Seu estômago se revirou.
Ele se esquecera completamente.
Era véspera de seu aniversário.
Sua mãe, mesmo cansada, mesmo sem dinheiro sobrando, fizera um bolo para ele. Sua irmãzinha ajudara, provavelmente lambuzando a cozinha inteira no processo. Eles estavam felizes, tentando criar um momento especial... enquanto ele se afogava em tristeza no andar de cima.
E isso o fez se sentir ainda pior.
Ele não queria estragar o esforço deles, mas não tinha forças para fingir que estava bem.
Por isso, ficou ali, imóvel, até que o barulho lá embaixo diminuísse e a casa mergulhasse no silêncio da madrugada.
Na manhã seguinte, seu verdadeiro aniversário chegou.
Lucas acordou com os primeiros raios de sol invadindo seu quarto.
Fisicamente, sentia-se um pouco melhor. O inchaço diminuíra, e o sangue seco em seu rosto fora lavado na noite anterior. Mas o peso em seu peito ainda estava ali, sufocante.
Ao descer as escadas, encontrou sua mãe na sala, assistindo ao noticiário. A TV exibia imagens de um acidente aéreo antigo, um que sempre era relembrado naquela data.
- Hoje faz 13 anos... - a repórter dizia.
Lucas olhou para a tela. O número de vítimas piscava no canto da reportagem: 256 mortos.
Por algum motivo, ele sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
Sua mãe notou sua presença e desligou a TV, forçando um sorriso ao se levantar.
- Feliz aniversário, meu filho. Que seu dia seja melhor.
Seu tom era suave, mas Lucas percebeu que havia uma preocupação oculta ali.
Ele tentou sorrir de volta, mesmo sem sentir nada por dentro.
- Obrigado, mãe.
Beijou sua bochecha e saiu pela porta, sentindo que aquele dia seria apenas mais um peso para carregar.
Na escola, o ambiente parecia o mesmo de sempre, mas Lucas se sentia deslocado. Como se estivesse caminhando entre sombras.
Ele entrou na sala, pronto para passar o dia despercebido, quando uma voz suave o chamou.
- Lucas, parabéns!
Ele se virou e viu a professora Helena segurando um pequeno pacote.
- Eu sei que você não gosta muito de festas, mas achei que esse presente poderia te alegrar.
Lucas piscou, surpreso.
Ele não esperava aquilo.
Pegou o pacote com mãos trêmulas.
- Obrigado, professora... Eu realmente não esperava isso.
Ela sorriu, e por um breve instante, algo dentro dele se aqueceu.
Não era muito. Mas, naquele momento, aquela gentileza inesperada era tudo o que ele precisava para continuar em pé.
Porque, no fundo, mesmo em meio a toda a dor, Lucas ainda queria acreditar que existiam pessoas que se importavam com ele.
Mesmo que fosse apenas um gesto simples.
E talvez... talvez isso fosse suficiente para ele não se perder completamente.