Sam arqueou as sobrancelhas, caçoando e cochichando do amigo. Mesmo que não fosse admitir, sabia que Karl estava certo, portanto ficou no lugar em que estava.
Karl respirava fundo, deixando o ar passar devagar pelas narinas e expandir os pulmões. Segurava o arco com firmeza, o rêmige da flecha lhe roçava o rosto e causava coceira, mas precisava ficar parado. O silêncio gelado daquela manhã era útil. Se acertasse no lugar certo, mataria o animal de uma só vez. Acompanhando as batidas do coração, Karl esperou até que conseguisse contá-las e saber quando atirar. Um, dois, três. Flecha lançada. A seta percorreu uns dez metros por entre as altas árvores até atingir a criatura exatamente no pescoço, foi fatal. A morte fora tão rápida que não houve gemidos de dor, apenas o som do corpo pesado dando um baque no chão.
"Satisfeito?" perguntou Karl, com um leve orgulho de si mesmo.
"Pegue logo o bicho, está frio pra caramba aqui!" respondeu Sam, que tremia como vara verde.
Karl pôs o arco na aljava e Sam o acompanhou até o corpo do veado. Passaram pelo tronco caído que usaram de apoio, pisando e apagando os vestígios da fogueira da noite passada. Caminhando na direção do corpo, o frio os encobria. Era possível ver de longe a poça vermelha se esvaindo do ferimento, não era uma visão que agradava Karl. Ao chegarem, Karl se agachou e com certa dó retirou a flecha daquele pescoço peludo. Depois, Sam rezou em agradecimento por aquele que seria o almoço e o jantar de vários dias. Karl não rezou. Sam, com receio, levantou o bicho nas costas e o carregou enquanto caminhavam de volta para a vila, como era o hábito. O caminho de volta não era tão grande, mas demorariam uma hora para chegar. Passando pelas copas das árvores abaixo do céu enegrecido pela aproximação do inverno, Sam começou a falar.
"Tenho que dizer. Você enche o saco com essa de concentração e de 'espere mais um pouco', mas é um dos melhores caçadores da vila, se não for o melhor." Disse Sam sorrindo sem mostrar os dentes. "E cara, como isso aqui pesa!"
"Meu pai sempre dizia: "Se tiver paciência, vai conseguir o que quiser.". Não tenho lá muita paciência, mas tento." Disse Karl, pensativo.
Caminharam por algum tempo em meio àquela floresta profunda e escura. No caminho Sam falava aos montes sobre qualquer coisa: o clima, as árvores, mulheres, religião. Karl escutava e respondia uma coisa ou outra, mas a verdade é que o berrante da dupla era Sam. Finalmente, depois que Karl já não aguentava o frio e o falatório do amigo, eles sentiram o cheiro da fumaça das chaminés e ouviram as vozes altas vindo mais à frente. Puderam ver, no topo do pequeno morro, a torre velha do templo, sinalizando que haviam chegado a Solar. A esquecida Solar. Logo antes de passarem pela entrada, puderam ver as pessoas indo para lá e para cá. Grupos de mulheres levando cestas de frutas para casa ou cestas de roupas para lavar no rio mais próximo, homens conversando sentados nas varandas das pequenas casas, um cachorro dormindo debaixo de uma escada aqui, um gato se espreguiçando sobre um telhado ali. Havia lá suas pequenas lojas e uma única taverna em toda a aldeia. Solar podia ser pequena, mas o que não tinha de grande, tinha de movimentada. O solo era enlameado de tantas pisadas o dia todo e pela umidade do inverno. Sam dava bom dia para quem passasse perto, Karl sorria sem mostrar os dentes e acenava com a cabeça, acanhado. Caminharam até um pequeno estabelecimento de aparência rústica. Havia uma bancada onde dormia um gato cor de zebra. Uma placa de madeira pendurada escrito "Açougue do Porco-Jantado" em letras vermelhas e uma tentativa de desenho de um porco preparado para ser devorado com uma maçã na boca chamava a atenção de quem visse. Na bancada da loja esperava um senhor pequeno usando um avental manchado de sangue seco, cabelo ralo, olhos incrustados em olheiras e alguns dentes em falta. Ele segurava um facão como uma criança segura um pirulito. Era Bill, o dono do lugar.
"Bom dia Sam!" gritou Bill, com sua voz pesada e arrastada ao ver os dois se aproximarem. "Que monstro é esse nas suas costas?"
"Uh, hã, bom... dia, Bill" devolveu Sam retirando com dificuldade o veado das costas. Estava ofegante. "Esse é dos grandes, cortesia do Karl, ele que fez a gente demorar tanto. Não é amigão? Ai que droga, minhas costas tão cheias de sangue." Terminou ele, tentando olhar as costas.
"Desculpe Bill." disse Karl, forçadamente.
"Oh, tudo bem! Desde que me tragam alguma coisa, eu não me importo. O povo desta vila come mais que uma família de ursos prestes a hibernar. Temos que alimentá-los, não é?" Disse o senhor, dando seu conhecido sorriso com dois dentes a menos.
"Vejo que os outros também trouxeram coisa boa." Exclamou Sam, desistindo de olhar suas costas, vendo que para isso precisaria quebrar o pescoço. Ele notou alguns porcos e coelhos pendurados por ganchos atrás da careca de Bill.
"Ah sim, trouxeram sim, carne jovem e gostosa. Mas vocês parecem ter pedido diretamente ao Sol por este aqui." Disse Bill, balançando o facão tranquilamente próximo ao rosto de Sam enquanto olhava o enorme animal morto. "Esse é dos grandes mesmo, deve ter dado trabalho carregar."
"E como deu. Amigo, eu até tentaria te ajudar a levar ele para dentro, mas eu e Karl estamos mortos, pode cuidar disto?" disse Sam, já se retirando do local na esperança de não ter que fazer nada.
"É, estamos meio cansados." Disse Karl, sem olhar para Bill.
"Hã, eu que estou realmente cansado. Você não carregou esse aí nas costas." Ralhou Sam, gargalhando com Bill.
Karl já esperava pelo fim daquela conversa há um tempo, queria sair dali. Partindo primeiro que Sam, ele se dirigiu até uma pequena casa. A porta branca era reconhecível de longe. Era a casa de Sam. Batendo algumas vezes na porta, esperou impaciente que abrissem.
"Bom dia, Karl!" disse a mulher que abriu para ele. Seu semblante animador, olhos vivos e sorriso iluminado eram sempre incomuns para Karl, ela parecia bem no meio de um lugar não tão bom assim. "Ela está esperando você há horas, vai lá."
Ao entrar, ele retirou a aljava com o arco dentro e pôs num canto da sala, apressado. Caminhando em passos rápidos por um curto e espremido corredor, ele chegou à sala de estar onde três crianças brincavam com um cão em frente às chamas estalantes da lareira. Duas eram meninos, gêmeos. Uma era menina e tinha a risada mais melodiosa da sala, além de seus cabelos ruivos e lisos enfeitiçarem os olhos de Karl. Tão logo ele entrou, ela o olhou com seus olhos do azul mais celestial e seu rosto assumiu uma expressão da mais pura alegria.
"Papai!" exclamou ela, já correndo na direção de Karl. "Eu senti tanta saudade, que dia você saiu?" perguntou ela, curiosa.
"Eu saí hoje de noite e voltei hoje de manhã." Respondeu Karl, rindo de leve. "Só se passaram algumas horas, minha vida."
"Eu não acredito!" respondeu ela, aparentemente irritada. "Você me deixou esse tempo todo?"
Karl sabia que tentar explicar seria gastar saliva, então abraçou a menina com força. Sua vontade era de nunca soltar.
"Estou aqui agora, pequena, estou aqui." Disse Karl, baixinho.
"Pois bem, não me deixe de novo." Respondeu ela, com carinho, se aconchegando em meio ao abraço do pai.
Enquanto se abraçavam, o cachorro com o qual as crianças brincavam chegou com o focinho entre os dois, lambendo a cara de Karl e latindo. A menina deu tapinhas no cão, tentando tirá-lo de cima do pai.
"Chô, Luminoso! Chô!" gritava ela. Luminoso nem parecia notar.
O animal só largou Karl quando Sam apareceu. Aliviado, Karl se sentou numa das cadeiras de balanço presentes na sala. Após dar bom dia para os filhos do amigo, ele se serviu com um bom chá quente e pão amanteigado preparados para eles minutos antes de chegarem. Sam se acomodou numa cadeira do outro lado da sala, também bebendo do chá e comendo do pão.
"Isso está muito bom, Anna! Por acaso cuspiu aqui?" gritou Sam, rindo alto.
"Sam, seu garotinho!" gritou Anna lá da cozinha. "Você sabe que essas suas piadas não têm a menor graça, já mandei parar, e vá se lavar, você fede a veado morto!"
Sam riu junto de Karl, que agora estava relaxado. Estar ali, depois de todo o frio e silencio da floresta, era ótimo. O fogo crepitava e o acolhia naquele dia. Era bom se sentir acolhido.
Para ambos, a manhã fora como toda manhã em temporada de inverno. Eram quase totalmente diferentes. Sam era brincalhão, falava muito e sem vergonha. Karl era mais fechado, não falava com quem não conhecia e costumava ser reservado. Sam não dizia, mas gostava de ter Karl por perto, e Karl nunca disse, mas para ele Sam era o único amigo real que já tivera. Estar ali era uma benção para Karl, uma benção que ele nunca esperou receber.
Quando chegou a hora do almoço, todos já estavam famintos e cansados de conversar e brincar com Luminoso, que não parecia cansar nunca. Reunidos na sala de jantar, sentados nas pequenas, porém confortáveis cadeiras esperando pelo que viria. Anna entrou com uma grande tigela cheia de carne, provavelmente de porco, pelo cheiro incomum, e depois trouxe mais duas tigelas: uma de arroz e outra de legumes. Tudo posto à mesa, Sam pediu que dessem as mãos e rezassem em agradecimento pela refeição. Karl não rezou, mas estava de olhos fechados. Sam notou que o amigo nem mexia os lábios, fingindo rezar, isso o incomodava.
"Oh Grande Sol, por favor, ajude Karl a enxergar. Ilumine o caminho dele e guie-o para onde dever ir. Todos nós aqui acreditamos nele." introduziu Sam na oração. Logo depois terminando. "Mais uma vez, obrigado pelo alimento, e que hoje tenhamos um bom momento de adoração e gratidão a você. Pedimos que nosso amigo venha conosco hoje, que o coração dele amoleça e ele perceba a grandiosa bondade que tens tido com ele. A luz seja conosco!"
Karl escutou a última frase com incômodo. Mais uma vez Sam tentava trazê-lo ao templo. Já havia conversado com Sam sobre aquilo, entretanto o amigo parecia ignorá-lo todas as vezes. Por fora, fingia de forma terrível que não se incomodou com o puxão de orelha de Sam, por dentro estava pegando fogo. Karl detestava aqueles olhares, dos adeptos, pareciam fulminá-lo com os olhos. Ele não queria ir, de jeito nenhum, mas sabia que não tinha chances, não por Sam, mas por Elena.
"Querida, isso tá ótimo!" exclamou Sam, de olhos esbugalhados fitando a comida.
"Ah, eu pensei em você, vida." Respondeu Anna. "Podem comer mais!"
Sam logo pôs mais comida na tigela, devorando tudo como um leão magrelo.
"Ei Karl. Você vai hoje, certo?" falou Sam, entre colheradas cheias. "Elena irá cantar no coral das crianças, você não a deixaria lá sem o pai, não é?"
"Mas é claro que eu vou, não perderia por nada." Respondeu com um falso sorriso de canto de boca, sem olhar diretamente para Sam. "Hã, que horas vai começar? Eu quero estar arrumado, não é princesa?"
Elena sorriu para ele.
"Vou fingir que estou cantando só pro senhor!" gritou ela, animada.
"Que bom. Isso é muito bom." Comentou Sam, olhando para os dois, tentando tirar algum resquício de carne dos dentes. "Bom, crianças, querida e Luminoso. Poderiam, por favor, nos deixar a sós? Preciso falar com seu papai, Elena."
Anna pediu para que as crianças a ajudassem com a louça, e colocaram o cão para fora. Agora estavam apenas os dois ali, Karl sabia que não acabaria com os dois gargalhando alto.
"Irmão, eu e você sabemos que odiamos falar disso, mas tenho que tentar sempre. Não custa nada." Começou.
"Sam, você sabe que já tentei e que tentaria de novo se sentisse que estou mais perto de acreditar. A coisa aqui é que não estou. Nunca estive." Respondeu Karl.
"Isso é pelo Mediador? Ele só quer ajudar você Karl, não vê isso?"
"Me ajudar? O que aquele velho pode fazer?" disse Karl, irritado e intrigado. Sam o olhou com seriedade, desagradado de o amigo ter usado "velho" ao falar do velho. "Certo, desculpe. É só que eu não acho que ele possa fazer alguma coisa, Sam, ele só pode rezar e rezar. Ele, os noviços dele e o povo todo dessa vila só podem rezar por mim, para que nada me aconteça. Mas sei que tirando você, todos aqui me odeiam ou repudiam."
Sam se sentiu ofendido e sentiu que Karl havia ofendido toda a vila.
"Por que diz isso?" perguntou ele.
"Talvez você não faça isso, e acho que não faz, mas os outros sim. Todo mundo aqui me olha como um cachorro sem dono Sam, como se eu fosse menos pessoa que eles apenas porque me recuso a ir aos cultos. Não sei se sabe como é, mas é difícil estar aqui quando todos te olham torto e você sabe que falam de você pelas costas. É como ser apunhalado desde quando se levanta da cama." Respondeu Karl, já com uma veia saltando na testa.
Sam não sabia o que dizer, era óbvio que ele não entendia. Ele nunca entenderia.
"O Mediador pode tentar me ajudar, mas ele não pode mudar o que houve. Mesmo que ele quisesse me ajudar, eu não aceitaria, ele não pode fazer nada." Terminou Karl, sentindo seus olhos ficarem marejados. Já estava farto de Sam e daquela discussão.
"Quantos anos tem a Elena?" perguntou Sam. "Uns sete?"
"Ela tem seis" respondeu Karl, já impaciente e enjoado da própria voz.
"Veja só, já faz seis anos Karl. Seis anos. Já tentamos muito te ajudar, e você não aceitou o favor, não quero dizer que não farei isso novamente, porque nós dois sabemos que vou. Só quero que saiba que não iremos te ajudar para sempre." Disse Sam, rígido, convencido de sua razão.
Karl não respondeu. Com o punho cerrado, golpeou a mesa, que chacoalhou. Se levantou da cadeira, agradeceu pelo almoço e saiu batendo a porta de forma que pó caiu das paredes. Logo que saiu, caminhou para casa, onde esperava sentir um pouco de paz. Antes de ir, pegou seu arco com Anna e deixou Elena com as crianças para que ensaiassem até a hora do culto.
Não vamos te ajudar para sempre. Quem Sam achava que era? O papa? Nem ele e nem ninguém podiam ajudar. Aquelas conversas eram sempre motivo de os dois não se falarem por dias. Karl chegava a pensar que Sam só se tonara seu amigo por pura pena. Ele não precisava de pena, nem de ajuda.
As casas em Solar não eram muito distantes umas das outras, na verdade eram bem próximas. Todas eram parecidas por fora, mas por dentro eram diferentes. O lugar mais afastado ficava também no ponto mais elevado da vila, era o monastério que foi construído junto do Templo do Grande Sol. A casa de Karl não era um lugar feio ou desagradável, era pequeno, como quase todos, porém aconchegante.
Ao abrir a porta, soltou um profundo e pesado suspiro de quem está com raiva, mas não quer estar. Entrou, tirou os sapatos e pendurou seu arco nos ganchos da parede. Dentro do pequeno quarto, deitado na igualmente pequena cama, ele respirava fundo tentando se acalmar. Estava remoendo e remoendo sem parar as palavras de Sam. O ódio lhe subia à cabeça e já sentia o rosto arder. Não conseguia sentir que queriam lhe ajudar, parecia mais que queriam... Obrigá-lo a receber ajuda. As belas palavras de consolo dos vizinhos e talvez até de Sam não pareciam tão reais, e isso ele sentia a quilômetros.
Elena amava os cultos, mesmo que não entendesse nada sobre luz e escuridão, ela dizia que o Mediador falava bonito. Karl não achava, aquele velho era estranho, sempre sentira uma ponta de estranheza nele.
Tirando as mãos do rosto, virou a cabeça para o lado e viu o velho quadro que pintara há anos atrás. Lá estava ela, mais bela que qualquer beleza que Karl já imaginou ter visto. Estava com as mãos no ventre, já volumoso pelos seis meses até aquele dia, e aquele sorriso, um dos mais lindos de que se lembrava. As lembranças lhe vieram numa enxurrada poderosa de tristeza e saudade. Não sabia por que mantinha aquele quadro ali, mas sabia que não conseguia tirá-lo. Ele não sabia como fazer aquilo sem ela, não sabia como proteger a menina, ele só teve sorte até ali. Estava com medo, muito medo.
"Ah... Maria. Já faz tanto tempo e ainda não sei como fazer isso sem você." Sussurrou enquanto observava o quadro. Não parecia que tanto tempo havia passado.
Karl não costumava devanear e expressar suas emoções nem para si próprio. Por este motivo, claro, voltou a si e impediu que as lágrimas iminentes vazassem de seus olhos. Esfregou os olhos e escancarou a boca num bocejo, então se levantou, estalando as costas. Caminhou pela casa até a cozinha. Lá havia um fogão à lenha com algumas cinzas recentes de um pequeno jantar com Sam e a família, além de estantes com tigelas, pratos, copos, panelas. Karl abriu uma tigela com alguns biscoitos e se pôs a comer. Não era um dia muito movimentado. Os biscoitos ajudaram a passar a raiva, estava mais calmo, porém a conversa não saiu de sua mente.
O crepúsculo já se aproximava, a luz do sol enfraquecia através das janelas. O movimento nas ruas diminuiu, as pessoas se preparavam para o culto. Um breve enjoo lhe veio ao estômago. A noite provavelmente seria fria, já que a própria lua não surgia no céu, encoberta por nuvens pesadas, além disso, o clima já estava gélido desde a manhã.
Karl ouvia o sino do templo tocando, chamando todos para o repudiarem. Ele não queria pensar naquilo, então quis focar no fato de que sua filha cantaria com as crianças àquela noite. Falando nela, ele ouviu seus passinhos rápidos se aproximando da casa, ela era baixinha demais para abrir a porta, então ao ouvir suas batidinhas descompensadas, correu para lhe receber. Ao abrir a porta, viu a menina. Estava sorridente e saltitando de ansiedade. Seu cabelo estava encaracolado, -provavelmente Anna tinha um dedo nisto- e um lindo laço violeta jazia em sua cabeça.
"Papai, ainda não se arrumou? O que estava esperando? Eu tenho que lembrar tudo nessa casa?" perguntou ela, emburrada, com os punhos na cintura o encarando.
"Não filha, eu só cochilei um pouco hoje." Respondeu Karl, se segurando para não rir na cara de Elena. "Eu já ia me arrumar"
"Então vai, ué, quer que eu faça o quê?"
As duas eram daquele jeito, mandonas, ele quase nunca reclamou. Caminhou para seu quarto, abriu o pequeno armário e vestiu qualquer coisa que agradasse tanto ele quanto a menina. Como estava frio, pôs um velho casaco de pele e uma calça boa o bastante para não morrer de friagem. Ele só tinha dois calçados: as botas para caçar e um par não muito conservado que Maria lhe dera no seu aniversário de trinta e um anos. Ele optou pelo que não era muito conservado.
Karl se sentou à cama e pensou nas coisas enquanto punha os sapatos. Mais uma vez ele iria até aquele lugar e veria aquelas pessoas. Pior, ele veria o Mediador. Não estava ansioso por isto, mas lhe consolava saber que só teria que ir lá no mês que vem, já que as crianças só cantavam no começo de todo mês. Era só entrar, ouvir, fingir que ligava e ir para casa, nada tão complicado... Certo Karl?
Enquanto se calçava um barulho veio aos ouvidos. Elena batia na porta, indicando que o pai devia ter pressa.
"Estou pronto!" anunciou Karl. Ele se levantou e fechou a porta. Antes de ir, acendeu as velas da casa.
Ao abrir a porta para sair, notou a movimentação. As pessoas caminhavam para o templo como formigas para um grão de açúcar, ninguém ficava em casa. O sino tocou mais três vezes enquanto caminhavam. Elena estava com pressa, então Karl a carregou nas costas. Já no caminho as pessoas olhavam para Karl, que se esforçava para nem olhar de volta. Ele ouvia os cochichos ao longe, enquanto Elena cantarolava acima de sua cabeça.
Subindo o morro, ele já não suportava o peso da menina.
"Filha, pode ir caminhando agora, eu já chego lá." Disse subitamente pondo Elena no chão.
"Certo, mas sem atrasar!" disse com uma seriedade impossível de levar a sério e correu para junto das crianças.
Karl olhou à frente e percebeu Sam e família conversando com um senhor trajando um manto quase todo branco, com algumas listras douradas. Não fosse a tiara pontiaguda adornada em mais ouro e diamantes na cabeça, Karl não saberia, mas já que ela estava lá, sabia que era o Mediador. Talvez o homem mais extravagante da vila inteira. De longe Karl reconheceria o sorriso desconcertante daquele homem.
Agora queria evitar ter contato visual com qualquer um dos dois, então esperou que uma família passasse para segui-los e ficar oculto pelo menos na entrada. Quando já estivesse lá dentro, não haveria problemas, pois sempre sentava no fundo. Quando entrou, uma lembrança lhe veio. Viu os velhos bancos enfileirados e as mesmas pessoas sentadas em todos, lá a frente estava o altar de pedra esculpido há tantos anos. Depois do altar havia o grande vitral. Uma ilustração do grande sol de ouro ofuscando a escuridão abaixo dele e guardando seus adoradores colocados entre os dois. Aquela imagem dos bancos, do altar e do vitral lhe trouxe uma nostalgia mista. Fora o vitral e o altar, nada mais havia de interessante ali. Karl se assentou no último banco da fileira direita.
Olhando sobre o ombro, Karl viu Sam entrar com Anna e as crianças, sentando no banco da frente na fileira esquerda, bem perto do altar. Ele procurou Elena, a qual viu sentada junto às crianças três bancos à frente do seu. A menina o viu e sorriu para ele, que devolveu o sorriso, sem mostrar os dentes. Um noviço vindo do monastério foi para junto do altar, esperando que seu líder chegasse para receber os convidados. Depois que a última família entrou, o Mediador fechou as portas do templo e caminhou imponentemente rígido até o altar.
"Queridos, uma boa noite a todos." Começou ele. "Eu gostaria que soubessem da minha aterradora felicidade de ver todos aqui hoje, eu disse todos (falava de Karl). Como sabemos, estamos próximos do inverno, por isto não há nada mais reconfortante que chamar para nós o calor poderoso e eterno do Grande Sol Dourado! Saibam meus filhos, que a todo o momento as trevas buscam tragá-los. Não há um só momento de descanso para elas. Então demonstrem sua gratidão à luz do Sol cantando junto a mim e ao meu noviço! Lembrem-se, hoje seus filhos e filhas cantarão também."
Karl já batucava o apoio do banco com os dedos, fazendo o mesmo com os pés no chão. Queria logo que a música começasse. E queria muito mais que o culto já acabasse.
O Mediador se afastou e sentou-se na grande cadeira atrás do altar, sorrindo para todos, Karl pôde jurar que ele o encarou por alguns segundos. O noviço se dirigiu ao altar, e pediu para que todos se levantassem antes de começar a cantar. A música na verdade, não tinha uma letra, estava mais para uma melodia, era um cântico ao Sol. Todos o acompanharam, menos Karl, ele nunca entendeu como alguém gostava daquela música, era de uma estranheza ímpar. Os outros entoavam como se fosse trazer esperança, mas para Karl era como uma invocação maléfica. Incomodava os ouvidos e arrepiava todos os pelos do corpo, era como se algo ruim fosse acontecer.
Ele olhou para todos que realmente conhecia, olhou para Elena, - na verdade apenas para as costas dela - olhou para Sam e Anna, olhou para o Mediador, ele já nem sabia mais o que fazer, a música parecia infinita. Algo aconteceu de supetão. Todos ouviram um agudo e repulsivo estardalhaço. O som terrível invadiu o templo e interrompeu bruscamente a canção. Para Karl, pareceu que a "invocação" dera certo. Todos olharam para todos os lados buscando compreender de onde vinha o barulho. Gemidos incompreensíveis e tremulantes ecoavam lá de fora. O Mediador se levantou com rapidez da cadeira, pedindo que alguém visse o que estava acontecendo. Alguns homens se levantaram e correram para as portas, abrindo-as com rapidez. Como se as portas fossem um portal para o mais profundo escuro abismal, ouviram a barulheira esdrúxula com mais clareza. Uma figura cambaleante vinha lá de baixo, a principio não sabiam dizer o que era, estava muito escuro. O ser se aproximou, revelando ser um homem.
Os olhos estavam vermelhos e inchados com qualquer coisa que parecia pus vazando como lágrimas, a cabeça estava ensanguentada e cheia de cortes como se uma coceira dos infernos o tivesse acometido, a boca estava escancarada cheia de dentes podres e baforando podridão por todos os lados. Se contorcia, aparentando parecia enfurecido, pois correu cambaleando na direção de um dos homens. Os gritos no templo foram inevitáveis, as mulheres gritaram tão alto que a agonia se multiplicou nos corações de todos, e só de olhar os rostos boquiabertos e enojados de todos já era o bastante para não querer estar ali. Karl ficou paralisado enquanto via aquele homem diabólico encima do outro, tentando devorá-lo. Outros dois chegaram por trás e tentaram segurá-lo, mas era tão forte que foram precisos quatro para mantê-lo parado, Sam estava entre eles. O homem atacado respirava ofegante e afastado do louco, as mulheres e crianças choravam de medo. Karl retornou a si e logo procurou por Elena, que se encontrava aos choros com o resto das crianças.
"Querida, vai ficar tudo bem, não solte a minha mão, entendeu?" afirmou Karl, olhando-a apressadamente. Ela assentiu com a cabeça, enxugando as lágrimas.
O Mediador já estava próximo ao louco, que parecia um cachorro louco preso à correntes.
"Filhos, não tenham medo, isto é apenas uma provação. Vão para casa, eu tentarei resolver por hoje. Rezem por vocês, por mim, por nós, agora vão!"
O tumulto era intenso. Todos saíam aos chutes e encontrões. Com dificuldade, Karl e Elena alcançaram a saída, mas ao chegar lá, o louco agarrou o casaco que Karl usava, puxando-o em sua direção e se desvencilhando dos homens. Ele puxou com tanta força que o casaco rasgou. Num reflexo, Karl o tirou e correu para junto de Elena, que soltou um grito agudo em meio à multidão. Karl olhou para trás, fitando de relance o Mediador, Sam e os outros tentando controlar aquele estranho monstro. Logo o velho veio às portas, notando Karl ali. Seu rosto expressava o horror daquela ocasião, e o sorriso desconcertante deu lugar a uma seriedade dolorosa.
Todos correram morro abaixo, buscando se abrigar em casa. Entraram e trancaram as portas, eles não as abririam até a manhã seguinte. Flocos de neve caíam do alto, polvilhando aquela noite fatídica à sombria luz mórbida da lua no céu. Karl correu com Elena abraçada à ele até em casa, onde trancou sua porta. Não costumava acreditar no Sol ou nas trevas abaixo dele, nunca pensou na possibilidade de serem reais. Para ele tudo era coincidência. Mas naquela noite, naquele momento, com o rosto pálido e gritante daquele estranho louco gravado em sua mente, ele começava a ter suas dúvidas.