"Isso é um problema." Afirmou Karl.
"Um grande problema."
"E aquela coisa?" indagou Karl.
"Também procurei por aquilo, mas acho que desapareceu. Os restos do cervo estão naquele mesmo lugar." Disse Sam, esfregando as mãos com frio. "Temos que ir, Karl."
"Temos que ir. O Mediador vai querer saber disto, mesmo que não possa fazer nada para mudar." Disse Karl, voltando a encarar o chão.
Sam se sentou ao lado de Karl, recostado à parede de rocha. Colocou os quatro coelhos que achou ao lado.
"Você está melhor? Falou enquanto dormia." Perguntou Sam, preocupado.
"Eu não sei, tive sonhos ruins... Não quero falar disso." Respondeu Karl, sem olhar para Sam.
"Certo, e Karl... Sobre o Mediador, por que acha que ele não pode fazer nada?" questionou Sam.
"Ele é só um homem com roupas bonitas e alguns seguidores fiéis." Respondeu Karl, cutucando as brasas da fogueira com um graveto. "Somos apenas homens, Sam, não deuses."
"O Sol brilhará sobre nós outro dia." Afirmou Sam, reflexivo. "Prepare-se, vamos sair daqui a pouco, só vou rezar."
Karl assentiu. Foi tirar água do joelho. O frio era cortante, se não fosse pelo casaco que Anna lhe emprestou no dia anterior, seria insuportável. Quando tirou o pênis para fora, pareceu que iria congelá-lo. Uma imagem de seu membro congelando e logo depois se partindo em pedacinhos lhe arrancou uma breve risada, sufocada pelos ruídos alarmantes da mata. Karl se sentia incomodado, claro, já havia tantos incômodos que não sabia distinguir qual seria este novo. Talvez ele nem fosse assim tão novo. Ao voltar para a gruta, fez uma pergunta para Sam.
"O que acha que está havendo lá fora?"
Sam ainda rezava quando chegou, mas terminou rapidamente. Fitou Karl de dentro da gruta, vendo a preocupação e a curiosidade estampadas no rosto do amigo.
"Tudo é possível, pelo que parece." Respondeu Sam, pensativo. "Seja lá o que for, acabou vindo pra nós. Mas tudo vai se resolver."
"Hm..." murmurou Karl. "Está pronto?"
"Sim, vamos." Respondeu Sam, pegando os coelhos amarrados por cordas. "Pegue seu arco e fique atento."
Tomaram o caminho de volta. Era de sentir pena dos dois, pelo estado de suas roupas fedorentas e cabelos desgrenhados; quem visse acharia que viajaram por anos. O nevoeiro de outrora havia de dissipado, deixando a tarefa de vigiar os arredores bem mais fácil para os dois. Sam assoviava a mesma melodia estranha que Karl escutou no templo, três dias atrás. Isso o lembrou de Elena. Queria vê-la, precisava vê-la.
A floresta estava silenciosa, não ouviram nenhum pássaro cantar naquela manhã, sem esquilos nas árvores, nada. Karl se recordou da terrível correria de outrora, e em como isso lhe lembrou daquilo que queria esquecer. Como numa terrível tortura, as imagens dos restos do cervo também lhe vieram, e a lembrança do odor fétido o incomodava. Achou estranho que, se recordando do cheiro, ele pareceu ficar mais forte e "palpável", como se algo realmente o estivesse emitindo ali por perto. Mais e mais real, o cheiro penetrou com força em suas narinas e uma ânsia de vômito lhe socou o estômago.
"Que droga, essa merda de novo." Disse Sam, interrompendo o assovio. "Eu tava puxando ar, que nojo! Karl, aquela coisa pode estar perto, prepare-se."
Karl não estava apto para usar uma flecha, ainda se sentia desnorteado. Empenhando sua machadinha, vigiou os arredores. Apertaram o passo, quase corriam, mas não tão rápido, a neve dificultava.
"O cheiro está forte demais, não acho que seja só um." Exclamou Karl, lagrimando, os olhos irritados pelo odor.
"Que inferno, você tem razão. Continua andando." Concordou Sam, segurando o vômito.
Enquanto se agoniavam, ouviram murmúrios ao longe, gritos. Alguma coisa acontecia em Solar, e o cheiro vinha de lá. Karl logo pensou em Elena, e começou a correr, sem ligar para a neve. Quando chegaram, puderam ver as pessoas todas amontoadas numa multidão empunhando terçados, foices, machados, qualquer coisa que pudesse matar. Pareciam estar gritando palavrões e outras asneiras.
Karl se chocou com a visão. Continuou correndo para encontrar Elena, não largou a machadinha. A lembrança lhe veio num flash novamente: sangue, muito sangue misturado à água da chuva. Chacoalhando a cabeça, afastando a memória para longe, continuou correndo até se chocar com a multidão. Enquanto adentrava aquela loucura, ouviu os xingamentos, as ameaças e acima de tudo, os berros e gritos de alguém que não parecia bem. Também sentia o cheiro mais forte, como se estivesse quase na origem dele. Pessoas vomitavam aos montes na multidão. Quando chegou ao olho do tornado, encontrou Jori indo ao seu encontro com a boca escorrendo algo enegrecido que queimava o chão ao pingar. Tentava mordê-lo. Uma triste surpresa. Karl saltou para trás, se aliviando ao ver que Jori estava preso por correntes seguradas por alguns homens que pareciam tentar neutralizá-lo.
"Jori?" disse Karl, tristemente surpreso.
O rapaz estava sem nu, parecia ter fugido. As cinco feridas em seu peito estavam inflamadas, e as veias, saltadas e negras, como se o sangue tivesse apodrecido. Seus olhos eram amarelados. Seu rosto parecia preso a uma agonia eterna.
"Matem esse monstro!" gritava a multidão. "Matem ou nós mataremos!"
Jori olhava para eles e urrava em cólera, salivando aquele ácido extremamente fétido.
"Me deixem em paz! Parem, parem de me atormentar, por favor parem... Parem!" gritava o jovem, olhando para todos os lados, seu olhar estava perdido.
Num reflexo, Karl olhou para o lado e viu que Sam mirava uma flecha na testa de Jori.
"Chega disto!" gritou uma conhecida voz, lá de cima do morro. "Filhos, abaixem suas armas."
Todos olharam para cima, até Jori. O velho descia o morro, imponente diante dos gritos e debatidas de Jori. As mãos juntas, cobertas pelas mangas de seu manto. O rosto sério, expondo certa indignação.
"Homens de corajem, puxem ele para o templo. Alguém os ajude, por favor." Pediu o Mediador.
Karl e Sam, junto de outros dois homens, trataram de ajudar a levar Jori de volta para o templo. Foi uma tarefa árdua, pois assim como das outras vezes, a força dele era grande. Quando enfim conseguiram, respiraram com dificuldade. Outros homens ainda seguravam resistentes as correntes, Karl notou que haviam se partido.
"O que houve?" perguntou Karl.
O Mediador, que esperava à porta do templo, logo respondeu.
"Depois que você o tratou, cuidamos dele, mas esta manhã quando fui rezar por ele... Bom, estava assim."
"E como ele não matou o senhor? Ele está forte demais." Disse Karl, duvidoso.
"Eu o repreendi." Respondeu firme.
Karl assentiu, sem muita certeza.
"E o que houve depois?" perguntou.
O Mediador aparentava não querer falar, tentando despistar Karl.
"Hã... Tivemos que prendê-lo. Ele começou a nos chamar por nomes indignos e tentou nos machucar. Não contava que ele fosse se soltar." Respondeu o velho.
Karl sentiu uma ponta de fraqueza na fala do Mediador, aquilo não estava certo.
"Vamos deixar que os homens o confinem novamente, desçam comigo e resolvamos a questão lá embaixo." Exclamou em alta voz para todos os homens ali presentes.
"O que vai fazer com Jori?" questionou Karl enquanto o velho já caminhava para descer o morro.
O Mediador parou, fitando-o sério, talvez irritado. Conseguia parecer gentil até quando perdia seu perfeito controle.
"O Sol queimará este mal, filho Karl." Disse ele, sorrindo.
Juntos, desceram o morro. A multidão não saiu dali, ainda esperavam irritados, cochichando e murmurando.
"O que será daquele monstro?" questionou um dos protestantes, chacoalhando um terçado no ar. "Ele fede!"
O Mediador fez sinal para que todos ao seu lado se juntassem á multidão. Respirando fundo, começou a falar em meio aos flocos de neve.
"Ele não é um monstro, filho, ele é apenas é um atormentado. Assim como todos nós aqui, ou estou errado?"
Ninguém negou, o tormento que caiu sobre Solar era de unanimidade.
"Pois bem, assim como tento rezar para que demos a volta por cima, rezarei por ele. Lembram-se do Ritual de Expurgo? Achei que não seria mais necessário desde que o primeiro atormentado morreu um dia atrás, mas estava enganado. Realizarei o Ritual na esperança de afastar o mal tanto de Jori quanto de Solar. Me prepararei hoje para isto. O Sol queimará as trevas. Creiam!" exclamou o Mediador, erguendo os braços ao alto em júbilo.
As pessoas se alegraram. Os homens urraram, as mulheres gritaram "vivas", Sam ria de alegria. Karl estranhava aquilo, notara algo errado na fala do velho: da primeira vez que o Mediador falou do Ritual de Expurgo, disse que servia para tirar o mal apenas de uma pessoa, mas agora falava de retirá-lo tanto de Jori quanto de toda a vila. Algo saía dos trilhos.
"Porém, um aviso, meus filhos." Exclamou de repente. "O mal se prende à nós, e como um maldito parasita, não sairá facilmente de Jori e muito menos de Solar. Portanto, não importa o que ouvirem ou sentirem amanhã à noite, rezem com fé e vontade, pois as trevas não fugirão sem lutar."
Os urros, vivas e sorrisos desapareceram. As palavras sombrias do velho pesaram sobre os ouvidos esperançosos de suas ovelhas. Por um minuto permaneceram ali, se encarando e cochichando. Karl estava curioso, porém cansado demais para continuar pensando, precisava de um cochilo.
A multidão se desfez em cabeças baixas sob o sol frio daquela tarde. Karl procurou por Sam e o encontrou sentado a uma mesa na única taverna de Solar. Caminhou com dificuldade até ele, a adrenalina de outrora deixou dores em todo o seu corpo.
"Trás dois copos grandes e cheios, Jack." Pediu Sam ao atendente da taverna.
"Eu não acho que seja boa ideia." Disse Karl, se sentado na cadeira do outro lado da mesa.
"Ah, não faz mal beber um pouco, se dê um tempo, estamos quebrados." Afirmou Sam, sorrindo. "Ei, isso foi uma loucura, não é?"
"E como foi." Concordou Karl, assumindo uma expressão de gratidão. "Sam, obrigado por tentar me salvar naquela hora. Foi estranho ver que você quase matou Jori."
"Ah, não foi nada. Eu ainda fiquei irritado de não ter podido atirar." Disse Sam, gargalhando. "Somos amigos, tem horas que tô tão cansado que vejo o quanto agimos que nem crianças."
"Você tem razão. E isso que aconteceu com Jori... Fiquei assustado, e um pouco triste. Ele era um bom rapaz." Falou Karl, cabisbaixo.
"Não fale como se ele tivesse morrido, ainda tem esperança pra ele." Respondeu Sam. "O Mediador cuida de nós, irá cuidar dele."
"Hm, mas você não acha estranha toda essa situação? Primeiro um monstro deformado aparece e tira a paz das pessoas, depois ele ataca um dos noviços, dois dias depois o noviço aparece virando um monstro também." Explicou Karl, duvidoso. "Ele estava bem, tinha tudo para continuar bem. Viu as feridas no peito dele? Pareciam... Podres."
Sam ergueu os olhos, arqueou as sobrancelhas e respondeu Karl.
"Irmão, há coisas no mundo que não temos como entender. Buscar compreender o incompreensível é pedir para enlouquecer."
Karl ouviu, mas não ouviu, ainda pensava profundamente, tentando ligar as coisas.
"E o corpo, o do monstro, que fim teve?" perguntou Karl.
"Disseram que foi enterrado pelo próprio Mediador, sozinho." Disse o rapaz com as bebidas, de repente. "Desculpem minha intromissão."
"Ah, tudo bem, obrigado pela bebida." Disse Sam, logo depois olhando para Karl. "Tem sua resposta."
"Ainda acho que deveríamos ter cremado o corpo." Disse Karl, levemente irritado.
"O Sol nos trará a luz." Disse Sam, erguendo seu copo esperando por um brinde.
"Acho que já vou indo, quero ver Elena, até mais tarde, irmão." Falou Karl, se levantando. Mal bebeu.
Karl estranhou quando o rapaz das bebidas contou que o Mediador sepultou o monstro sozinho, mesmo que fosse o sacerdote de Solar, não era algo que fazia sentido se fazer sozinho. Algo estava no ar, e literalmente não cheirava bem.
Dali passou para Ana, onde buscou Elena e avisou que Sam estava na taverna. Pai e filha foram para casa. Ao entrarem, sentiram o bem vindo calor das velas tocar suas peles, Elena soltou um suspiro de prazer e Karl esticou as costas. Fechando a porta atrás de si, Karl jogou seu arco, aljava e flechas para um canto, sentando-se na cadeira de balanço.
Notou que Elena caminhava de um lado para o outro, olhando para si, ele sabia o que isso queria dizer.
"Pequena, o que foi? O que te preocupa?" perguntou Karl, a dor de cabeça começava a renascer.
A menina parou, fitando o pai de braços cruzados e com uma expressão de tristeza.
"Estou preocupada com você, papai." Falou ela.
"Oh, por que, pequena?"
"Eu fico com medo de todas essas coisas que tão acontecendo... A tia Anna diz pra não me preocupar, porque o Mediador cuida da gente. Mas é difícil. Eu tenho medo que você me deixe."
Karl sentia os olhos incomodarem, como se quisesse chorar. Ele a olhou, admirado.
"Querida, eu nunca vou te deixar. Nunca." Disse Karl, abrindo os braços para um abraço.
"Mas e se tentarem tirar você de mim, ou eu de você?" falou ela, já envolvida nos braços do pai.
"Eu vou dar tapas neles." Disse Karl, com uma falsa expressão de seriedade.
"Isso papai, bate neles!" ralhou ela, rindo. Ele amava escutar sua risada.
Permaneceram um tempo ali. Karl chegou a pensar que Elena dormira em seus braços, mas constatou que não quando ela falou.
"Papai."
"Sim, pequena?" disse Karl.
"Acha que as velas vão nos proteger?" sussurrou ela.
"Elas sempre nos protegeram, garotinha, tudo vai ficar bem." Disse Karl, acariciando seus cabelos e dando-lhe beijos na cabeça.
Ele não sabia de verdade se as coisas ficariam bem, mas por Elena, faria com que tudo ficasse. A tarde foi passando e o sol foi enfraquecendo. A noite se aproximava, e junto dela, uma estranha sensação formigava em Karl. Se fosse para tudo ficar bem, ele teria que assegurar que tudo ficasse. Não importavam as coisas que acabasse descobrindo, pois ele iria descobrir algo.
Naquela noite, Karl pensou instigantemente, planejando o que estava prestes a fazer. Não seria rápido, fácil e nem seguro, havia chances de ser flagrado, então precisava ser silencioso. Provavelmente tomaria pelo menos uma hora de tempo, era o bastante. Karl não queria fazer aquilo, mas precisava, era muito suspeito, tudo estava muito suspeito, na verdade.
A casa estava em silêncio, estática, como costumam ficar as casas quando o objetivo é não fazer barulho. Lentamente se levantou da cama. Já estava arrumado há horas, apenas esperou a hora. Olhou rapidamente para o quadro que pintou e o beijou, depois saiu do quarto. Em passos lentos ele se moveu para a saída, Karl desejava de coração que Elena não acordasse com sede ou com vontade de ir ao banheiro, caso acontecesse, ela não o deixaria sair.
Pela primeira vez, não quis acender as velas, mas mesmo assim. Quando tudo estava devidamente iluminado, pegou uma das velas posta num lampeiro e saiu pelos fundos. Ao abrindo a porta, se viu na noite mais fria até ali, parecia estar num cubo de gelo. Mesmo usando um grosso casaco doado por Anna e Sam, ainda se via tremendo. Caminhou para a parte da casa onde guardava suas ferramentas e ali pegou uma pá. Percebeu que a neve seria um empecilho a mais. Caminhou em passos largos pelas casas até se aproximar de uma área distante e vazia. O lugar era tão escuro que nem a vela conseguia iluminá-lo bem. Por um momento sentiu que estava sendo observado. Aquela sensação de olhos o vigiando perturbou até chegar ao lugar. Iluminou uma por uma as lápides que ali jaziam, era o cemitério de Solar.
Passou por várias lápides e em nenhuma jazia o finado que procurava. Então, num impulso de memória, lembrou-se de que havia um espaço do cemitério dedicado aos "Não iluminados". Só podia estar ali. O espaço dos incrédulos ficava justamente mais próximo da floresta, lugar que Karl queria distância. Segurou a pá com firmeza e levantou sua vela acima da cabeça, iluminando o caminho sob a luz fraca da lua. Andou, andou e andou até que as árvores foram entrando em seu caminho. Notou que o cheiro fétido adentrava suas narinas com força. O cheiro emanava do escuro, e sabia que não era cheiro de corpo morto, pois os corpos são enterrados a uma boa distancia da superfície. Quando finalmente adentrou as copas da floresta, o cheiro ficou mais forte. Com a vela, Karl iluminou o ambiente e notou que as árvores estavam apodrecendo, insetos caminhavam por seus caules e a seiva misturada àquele liquido enegrecido vazava, queimando a madeira e qualquer coisa que tocava. O lugar era de um escuro tão intenso e mórbido que nenhuma luz parecia forte o bastante para iluminá-lo. A vela pelejava para se manter acesa, mas algo parecia sufocar sua chama.
Karl não se esforçou muito para achar o lugar. Linhas negras semelhantes à raízes haviam se espalhado por aquele canto. Karl as iluminou e notou que eram como linhas de morte, pois onde estavam nem havia neve; ele percebeu que todas saíam de um mesmo lugar: um horrendo buraco no chão, semelhante a uma ferida inflamada. Enojado, Karl caminhou na direção daquele furo irregular. Algo o fazia suar frio. Agonia, medo e ansiedade se jogaram em seus ombros, lacerando todo seu corpo. Pondo a vela num canto próximo, teve cuidado para não tocar o buraco, pois sabia que aquilo poderia arrancar sua mão. Empunhando a pá, começou a cavar. O ar ali parecia arrancar sua força.
À medida que a terra era retirada, o cheiro piorava. Karl já esquecia o real motivo de estar ali, sufocado pelo odor e as sensações ruins. Quando finalmente alcançou o corpo, pôde ver a boca ainda escancarada e com a língua arrancada, os olhos fechados, sua aparência estava ainda mais grotesca à luz da vela. As presas estavam maiores que as de um cão, as orelhas ficaram pontudas, pelos e mais pelos cresceram em todo o corpo. Mas havia algo novo. Pegou a vela e percebeu algo reluzente enfiado no peito do monstro. Refletindo na luz, Karl viu que se tratava de uma adaga dourada, tão dourada que poderia cegar alguém se refletida a uma luz mais forte. Sem entender, Karl apenas tentou retirá-la, com certa dificuldade. Percebeu que havia veias de ouro se espalhando pelo corpo do monstro, e todas saíam da adaga. Quando a retirou, observou-a com a vela e viu algumas gravuras incompreensíveis escritas no cabo dourado. Karl ficou admirado do objeto, não parecia real. Era perfeitamente moldado e encaixava perfeitamente em sua mão. Uma sensação de força invadiu seu ser, e agora sentia que poderia matar mil homens e erguer uma rocha ao mesmo tempo. Se esquecera de coisas fúteis como amor, família e até sua humanidade. A arma era bela, atrativa, encantadora... Karl sentiu um impulso de levá-la consigo. Uma sensação estranha lhe veio, era como se tivesse achado o maior tesouro de sua vida, como se aquilo fosse uma parte que faltava em seu braço. Uma pontada aconteceu em seu peito, não era dor, estava mais para... Prazer, como se a lâmina precisasse fazer parte de seu ser, de seu coração. Com certa solenidade, Karl segurou-a com as duas mãos, erguendo acima da cabeça. O mundo externo parecia lento, quase estático, não sentia mais frio, não ouvia mais o som da noite e nem sentia mais as sensações ruins de segundos atrás.
Imagens passaram por sua mente. Ele se viu como um homem poderoso, milagroso, glorioso. Poderia finalmente se dar tudo o que merecia. Estava ali, a apenas alguns centímetros de alcançar o poder ilimitado, só precisava de um pouco de força, pouco importava se doeria. De repente, quase imerso nos sonhos de ouro, uma lembrança lhe veio. Uma boa lembrança. Karl e Elena estavam felizes fazendo uma breve caminhada pela floresta como costumavam fazer um ano atrás. Karl amava caminhar com sua pequena, ela sempre pedia para brincarem de pega-pega. Ele se cansava, mas era um cansaço recompensador. Aquilo lhe lembrava de Maria, e em como se sentia quando estava com ela. Nesse momento de reflexão e nostalgia, Karl foi afastando a adaga de seu peito, chocado com o que esteve perto de cometer, assustado com o que imaginou de si mesmo. Se ajoelhou próximo do corpo com a adaga em suas mãos. Olhou para o objeto e percebeu a natureza maligna dele. Karl a ergueu novamente acima da cabeça.
"Eu já tenho o maior tesouro de todo este mundo." Sussurrou Karl, apunhalando o peito do cadáver e devolvendo algo morto para os mortos.
Karl se sentiu mais leve, tinha certeza do que tinha e que não seria uma simples adaga de ouro que o faria perder isso. Levantou e viu que a chama da vela foi sufocada durante seu tempo de loucura. A luz da lua começava a invadir aquele canto escurecido, um breve milagre. Olhando em volta, Karl percebeu a terrível verdade: a de que algo muito, mas muito ruim invadiu aquelas terras e que estava se espalhando. Seja lá o que estava acontecendo lá fora, além daquele mar de árvores, era algo terrível o bastante para alcançar Solar. Ainda assustado, Karl caminhou para casa, dessa vez em passos mais rápidos e firmes. Claro, ele se preocupou em preencher o túmulo com a terra. Não sabia exatamente como, mas o Mediador tinha alguma coisa a ver com aquilo... O enterro que fez sozinho, a adaga... Algo literalmente não cheirava bem. Se ninguém fizesse nada, Karl faria alguma coisa, e não demoraria.
Chegou em casa silenciosamente, tirou as roupas e exausto se deitou na cama. Sentia a mão direita arder, como se a adaga ativesse queimado em resultado da rejeição de Karl. Sentia-se aliviado e até arrependido pelo que quase fez. Algo mais terrível que o que já havia acontecido estava por vir, algo que seria tão sombrio e cruel que estava devorando Solar e provavelmente a floresta ao redor... Senão o mundo.