O rosto horrendo e a bocarra escancarada daquele homem rugindo a centímetros de seu nariz. O bafo putrefato lhe fazendo chorar de nojo. Os olhos sangrentos e sem alma. Os gritos de horror... Seus sonhos podiam ser cruéis com ele.
Quando a luz do sol, enfraquecida pelas nuvens de inverno finalmente raiou em Solar, ele não havia dormido quase nada. Uma terrível dor de cabeça contribuiu para o péssimo humor de Karl naquela manhã. Seu desejo era não acordar Elena, que não teve a melhor noite da vida, então se esgueirou para fora da cama, evitando ao máximo emitir ruídos. Notou como o sono dela estava pesado quando a cama rangeu alto e a menina nem se mexeu, pobrezinha, estava tão assustada na hora que depois da adrenalina o cansaço lhe tombara. Sabendo que a menina só despertaria horas mais tarde, ele foi até o armário pegar alguma roupa. Esqueceu-se de que na noite anterior aquele monstro lhe arrancara o único casaco que tinha. Teve que voltar à cama para pegar seu lençol e se manter aquecido.
Ao sair do quarto, caminhou na direção da sala de estar da casa e se sentou na cadeira de balanço. Pôs-se a observar através das janelas o movimento lá fora, a dor dificultava, era intensa e desagradável. Não viu ninguém na rua, nenhuma alma sequer. Talvez estivesse cedo demais, e provavelmente estava, mas mesmo assim, Solar ganhava movimento desde muito cedo, porém não naquele dia. O trauma de anteriormente não deixava as pessoas tranquilas, obviamente. O que estaria acontecendo naquele momento? Será que o Mediador daria alguma notícia sobre a situação? Será que deveria ficar em casa, esperando pelo que iria vir a seguir? Eram perguntas sem chances de resposta. Mas a pergunta mais importante na mente de Karl era "O que acontece agora?".
A dor ainda persistia em sua cabeça e parecia ter vindo para ficar. Não conseguia manter com os olhos abertos por tempo demais, já que a luz, em contraste com a brancura da neve contribuía para a dor aumentar. Karl se lembrou de uma velha receita que aprendeu um tempo atrás, um chá que ajudaria a passar a dor. Levantou, caminhou até a cozinha e preparou o chá com umas ervas e água quente. Sentou-se em sua cadeira com o chá quente em mãos. Era reconfortante sentir aquele calor entre as mãos, e ainda mais era sentir o vapor morno lhe aquecer o rosto, dera um breve sorriso de prazer e bebeu o remédio. O incômodo foi amenizado, mas a cabeça ainda doía.
Perambulando pela casa, Karl tentava entender como que de tantos os lugares em Luminária aquela coisa veio justamente para Solar. Parecia brincadeira. Solar era um lugar tão escondido e desconhecido que não fazia sentido ser encontrado assim sem mais nem menos. O mar de árvores à volta se mostrara inútil, incapaz de protegê-los. Agora Karl já começava a sentir raiva novamente, o que trouxe de volta sua dor na cabeça. Já conseguia sentir o rosto esquentar, se continuasse irritado, poderia aquecer a casa durante todo o inverno. Tão distraído estava que passou perto de não ouvir o badalar do sino soar lá de cima, no templo. Foram dez badaladas.
Surpreso, Karl esqueceu-se por alguns minutos de sua ira. Ouviu leves batucadas na porta de seu quarto, Elena acordou.
"O que é isso, papai?" questionou a menina assim que ele abriu a porta. Estava esfregando os olhos com as mãos. "Temos culto agora?"
"Não filha, foram dez badaladas, quer dizer que só o papai tem que ir." Respondeu Karl, tocando com o indicador em seu narizinho. "E também quer dizer que você vai para a tia Anna até eu voltar de lá, certo?"
Ela concordou, bocejando. Ainda estava com a roupa da noite anterior. Karl a pôs sentada na cama e buscou algo para vestir. Enquanto procurava, já conseguia ouvir os vizinhos também se preparando para sair, todos estavam com pressa. Ele já estava com a calça da noite passada, então pegou a camisa mais grossa que achou para se proteger do frio, além disso, também pegou luvas. Pegou algumas cobertas e envolveu Elena entre elas, levando-a aquecida para fora. Antes de sair, acendeu as velas da casa.
Sabia que ele e Sam estavam sem se falar, de novo, mas também sabia que Elena era mais importante do que qualquer briga dos dois. Saindo com ela nos braços, viu os outros homens já caminhando para o templo, seus rostos esbanjavam preocupação, olhares perdidos, seriedade, nenhuma palavra saía de suas bocas. O solo outrora enlameado, agora estava branco, coberto da neve que caiu à noite. Quando se aproximava da casa de Sam, pôde vê-lo se despedir de Anna com um beijo. Sam o notou se aproximando e disse algo para Anna, provavelmente avisando que Karl se aproximava com Elena. Quando chegou lá, Anna já o esperava, Sam seguiu caminho.
"Bom dia, Karl." Disse Anna, secamente. "Bom dia, querida."
"Bom dia. Pode cuidar dela?" Perguntou Karl, vacilante.
"Claro." Disse Anna com um sorriso, olhando Elena dormindo nos braços de Karl.
"Obrigado, Anna." Agradeceu Karl, entregando Elena para Anna. "Anjo, eu não demoro a voltar, está tudo bem, viu?"
"Só não vá..." começou Elena, logo depois abrindo a boca num bocejo. "Me deixar de novo..."
Karl olhou para Anna e deu um sorriso educado, porém triste. Então com um aceno de cabeça, ele se despediu. Tomando caminho, Karl tremia de frio, sua respiração podia ser "vista" evaporar de seu nariz e boca. A cabeça ainda parecia sofrer de marteladas sequenciais. Ele subiu o morro com dificuldade, pois a neve recente era fofa e fazia os pés afundarem. Quando enfim, alcançou o topo, se deparou com o Mediador às portas do templo, esperando por todos. Quem passava era recebido por ele, com Karl não seria diferente. Caminhando mais devagar agora que alcançara o topo, se aproximou da entrada. O velho o olhou e ele olhou de volta, com um sorriso educado sem mostrar os dentes.
"Bom dia, filho Karl." Disse ele. Parecia abatido. "Sente-se e espere."
Karl não o respondeu, apenas entrou, sentindo o calor muito bem vindo daquele lugar. Durante o dia, o templo não parecia o mesmo. Os raios fracos do sol refletindo pelas vidraças faziam o lugar ter uma aparência morta, envelhecida, como se centenas de anos tivessem se passado desde a noite anterior. Karl sentou-se no mesmo banco de antes, o último da fileira direita. Notou que Sam estava também no mesmo lugar, banco da frente na fileira esquerda.
Estar novamente naquele assento e naquele lugar lhe trouxe as imagens de antes, o horror, a agonia, o nojo. Era estranho estar de novo ali. Durante o incidente, desejou nunca mais voltar, e ali estava. Também devia ser estranho para os outros. Alguns rezavam de mãos juntas, outros estavam tão ansiosos que seus olhares eram perdidos, olhando para vários lugares e para nenhum, outros dormiam ainda sonolentos. Um incômodo lhe arrepiava a nuca enquanto esperava.
Finalmente, todos os homens entraram e as portas foram fechadas. Karl se sentia num culto novamente, observando o Mediador caminhar com a mesma imponência de outrora até o altar. Trajava um manto branco e agasalhado, sua tiara de ouro e cristais continuava à sua cabeça. Subiu os pequenos degraus e se pôs a falar.
"Homens de coragem que responderam às dez badaladas." Começou, apreensivo. "Serei franco e direto. Nossa situação é crítica. Durante toda a noite, rezei para que o Sol iluminasse meu caminho e me ajudasse a salvar aquele pobre homem. Mas infelizmente nenhuma força entre os homens pôde salvá-lo."
"Ele está morto?" questionou um dos presentes, trazendo uma breve animação ao restante.
"Não, ele está vivo. Está confinado no calabouço do mosteiro neste exato momento. Eu fiz o que podia. Li e reli os livros que temos no acervo do mosteiro em busca de alguma solução. Infelizmente o Sol se fez escuro aos meus olhos e não achei nada que nos ajudasse." Respondeu o Mediador.
"Então por que estamos aqui?" indagou outro.
"Estão aqui porque temos de nos manter firmes. E eu precisava dizer isso à vocês." Afirmou o Mediador. "O inverno chegou filhos. O inverno é um tempo de sombras. A comida ficará escassa, pois os animais também necessitam de abrigo neste tempo. Preciso de homens para caçá-los, homens para nos ajudar a sobreviver. Aqueles que constroem, construam. Aqueles que vendem, vendam. Temos de estar unidos, pois o Mal está vindo para nos provar."
"O Mal está vindo?" perguntou Sam, intrigado.
"Sim, ele está vindo. Não há como viver na luz sem conhecer as trevas. Chegou nosso tempo de conhecê-las, porém, nós vamos vencer!" respondeu, com um sorriso vitorioso. "Acalentem suas famílias, protejam os seus. Rezem sempre que puderem, estejam iluminados pelo Sol." Disse o velho, logo depois assumindo uma expressão preocupada. "Mas... Vocês têm de saber uma coisa. O Mal planta sementes, sementes estas que devem ser sufocadas. Todos temos Mal dentro de nós, então tomem cuidado, sejam fortes, não cedam à ele. Pois ele tentará vocês. Se sucumbirem, não serão apenas vocês, mas todos nós."
Neste momento, após escutar tudo aquilo, Karl respirou fundo, tomando coragem para dizer o que iria dizer. De súbito, se levantou e fez uma indagação que impressionantemente não havia sido feita até então.
"O que será do louco?"
O Mediador o olhou.
"Ah sim, eu ia me esquecendo, obrigado filho Karl." Respondeu. "Eu irei tomar uma última medida, não desejava tomá-la, pois sei dos riscos. Trata-se de um ritual de expurgo. Eu convocarei o Sol para retirar as trevas daquele homem. Mas devem saber que de onde ele veio, há mais por vir, disto podemos ter certeza. Vivemos aqui, envoltos por esta densa floresta e não sabemos o que está havendo lá fora. E seja lá o que aconteceu, isso trouxe ele para cá. Aos homens que caçam para suprir nossas necessidades, vão à caçada! Tragam-nos um bom jantar. O Sol vos ilumine, meus filhos." Terminou o Mediador, sorrindo vacilante.
Todos se levantaram com lentidão e caminharam para fora. Karl pensava nas palavras do Mediador. Uma cisma lhe subia nas veias, ele sentia que algo não terminaria bem.
Saíram pelas grandes portas do templo que logo se fecharam por trás deles. Todos percorreram morro abaixo, pensando cambaleantes no que lhes foi dito, e em como diriam isso à suas famílias. Enquanto pensava, Karl notou que Sam se aproximava, então desacelerou o passo para que o alcançasse.
"Ei, bom dia." Disse Sam, acanhado. "Isso foi doido, não é?"
Karl ainda se lembrava da discussão do dia anterior, mas enxergou a infantilidade em se prender a isso em meio a uma situação tão estranha e incomum como a que viviam. Por isto, respondeu.
"Bom dia, sim, foi muito estranho."
"Estou rezando até enquanto respiro para que isto se resolva." Exclamou Sam, dando uma breve gargalhada. "Torço pra que o Mediador faça o ritual sem problemas."
Karl ouviu e concordou educadamente.
"Tem razão, temos que ter esperança, senão nunca sairemos disso." Disse Karl. "Bom, Sam, você sabe como sou, eu sei que sou difícil e que discutimos. Mas..." Karl não terminou, pois Sam o interrompeu.
"Relaxa, está tudo bem. Eu também exagero às vezes, irmãos de caça?" perguntou Sam, com seu punho fechado, esperando que Karl retribuísse com o restante do cumprimento.
"Irmãos de..." novamente, Karl não terminou.
Gritos, gritos muito altos retumbavam assombrosos vindos do templo. Todos correram para cima, quando não conseguiram abrir as portas, chutaram até que abrissem. Quando as portas se abriram num estardalhaço, a visão horripilante daquele homem veio para cima deles. Parecia ter apodrecido mais desde a noite anterior. A pele de seu rosto parecia ter descascado, então era como uma máscara de carne. Sua mandíbula tinha se modificado, pois agora a boca abria tanto que chegava a lembrar um maldito cão infernal e os dentes, principalmente as presas, estavam afiados. Não havia mais um fio de cabelo na cabeça. Os olhos estavam amarelos, os braços, alongados e inchados, suas unhas formavam terríveis garras negras de tanta sujeira. O rugido, mais para um grito terrível, se assemelhava ao de um animal, porém tinha algo de demoníaco, algo que arrepiava todo o corpo.
Karl desviou no momento em que foi notado pela besta, que tentou lanhá-lo com as garras podres. Alguns homens tentaram segurá-lo, mas se na noite anterior não fora fácil, agora era impossível. Sua força aumentou de tal forma que num tabefe, um dos homens foi jogado contra as portas, quebrando uma delas com o impacto. Karl olhou por todo lado, procurando por algo que pudesse ajudar, mas nada parecia útil.
A fera já tinha um pescoço em sua mão, pronto para rasgá-lo em mil pedaços. Karl tinha que ser rápido, então, com seu próprio punho, socou uma das vidraças e tomou um dos cacos grandes do chão. Num impulso suicida ele se jogou nas costas da fera, perfurando e rasgando o animal até que este largasse o homem. Todos olharam assustados, ouvindo os grunhidos de dor do monstro, piores de se ouvir que seus rugidos. Com os longos braços, a criatura alcançou Karl, agarrando-o e tacando contra o chão como se fosse uma criança que se cansou de seu brinquedo. Aos gritos, o monstro tentava morder Karl, e respingos de um líquido negro lhe queimavam o rosto. Desesperado à procura de sua única arma, tateando o chão com as mãos, Karl conseguia sentir que a qualquer momento seria devorado. De repente, a fera parou. Sua expressão mudou para uma mais estranha. O amarelo dos olhos enfraqueceu e se tornou opaco, as veias negras dos braços empalideceram, a boca ainda aberta deixou de respingar e baforar, as sobrancelhas subiram e era como se quisesse chorar. Seu último suspiro podre foi dado, a cabeça se abaixou e Karl desviou dela, enojado, agoniado, assustado.
Quando tiraram o monstro de cima dele, notou que Sam o havia salvado. As mãos estavam sangrando com finos cortes causados pelo caco de vidro que usou. Karl o olhou. Estava pasmo e boquiaberto, estava grato, porém sem tempo para agradecer. Lá na frente, próximo do altar, jazia um dos noviços, com um cruel ferimento no peito. Suas vestimentas, outrora completamente brancas agora estavam vermelhas com seu sangue e rasgadas na área do peitoral. Outros noviços pressionavam o ferimento, porém o sangue parecia nunca parar de jorrar. Karl se aproximou e tomou a nuca do jovem em sua mão, olhando-o nos olhos.
"Ei, olhe para mim, olhe. Você vai ficar bem, entendeu? Vamos cuidar de você, certo?" Disse Karl, gentilmente preocupado.
"Uh... Uh!" grunhiu o rapaz. Respondeu vacilante. "Certo."
"Ótimo, então vamos te levar para onde eu possa fazer isso." Disse Karl, olhando para os outros noviços, e agora para o Mediador, ali presente.
Tomou o jovem nos braços e o carregou através de um estreito corredor de pedra iluminado por tochas até o monastério. No caminho, notou vários quartos e salas, era realmente um lugar grande, mas ainda assim apertado. Fora guiado até uma sala que parecia ser o refeitório, onde pôs o jovem numa das mesas.
"Tragam água quente com açúcar e panos, além disto, preciso de linha e agulha." Mandou Karl. "Você vai ficar bem, segure minha mão."
O jovem, trêmulo e fraco, apertou com uma força impressionante a mão de Karl.
"Você é bem forte, qual seu nome? Hein?" perguntou tentando mantê-lo acordado.
"Jori, meu nome é Jori, senhor." Respondeu.
"Jori, você é um rapaz forte, suporte um pouco mais." Afirmou Karl.
O jovem sorriu um sorriso forçado em meio à dor.
Logo, alguns noviços apareceram com o que Karl pediu e alguns homens vieram com linhas e uma agulha. Karl pediu que saíssem todos, exceto Sam. Quando fecharam a porta, pediu que Sam pegasse um dos panos e o encharcasse na água. Pegou o pano molhado e passou delicadamente pelo ferimento, que agora era visível. Cinco perfuradas das unhas daquele monstro passaram perto de matar o rapaz.
"Você tem sorte, não foi tão profundo." disse Karl com um sorriso.
O rapaz nem notara sua frase, estava chorando de dor. Karl pegou novamente o pano molhado e passou pelo ferimento até que o sangramento estancasse.
"Passe o fio pela agulha e dê um nó." Mandou Karl para Sam, que rapidamente o fez. "Certo Jori, agora vai doer de verdade, então preciso que segure bem a mão de Sam."
"Ah, seu maldito sortudo..." grunhiu Sam pela força com que Jori apertava sua mão.
Quando Karl ponteou todos os ferimentos, pediu faixas para os que estavam fora da sala. Eles entraram com as faixas e entregaram a Karl, que com a ajuda de Sam, ergueu Jori da mesa e enrolou as faixas pelo peito do jovem. Quando enfim terminou, Sam já não aguentava mais olhar tanto sangue.
"Pelos raios do Sol!" exclamou Sam. "Ainda bem que acabou. Eu juro que passei perto de vomitar."
"Pronto, você vai ficar bem, mas precisa descansar agora." Completou Karl. "Diga ao Mediador para lhe dar um chá de camomila todos os dias, é bom para feridas."
Ao sair da sala junto de Jori, foi recebido pelo Mediador com aquele seu sorriso desconcertante no rosto, olhando-o e o parabenizando.
"Você fez bem, filho Karl, fez muito bem. Obrigado por salvar o bom Jori. Meus noviços levem-no para descansar." Disse ele rapidamente olhando para os jovens de branco. "Eu o recompensaria, mas ainda temos questões a tratar."
"Jori precisa de cuidados, os pontos que fiz foram apressados..." começou Karl, sendo interrompido por Sam.
"Depois de discutirmos o que temos para discutir, falamos de Jori, certo Karl?"
Karl engoliu em seco, concordando forçadamente de boca calada.
Caminharam de volta ao templo, chegando lá, perceberam que a situação foi tão caótica que nem se lembraram do corpo. Falando nele, lá estava a criatura estirada no chão. O caco enorme enfiado nas costas e o sangue escurecido ainda vazando, já com moscas voando ao redor.
"O que faremos com aquilo?" questionou um dos homens.
"Bom, acho que deveríamos queimar." Respondeu Karl, decidido. "É o mais sábio a se fazer."
O velho o olhou com espanto.
"O mais sábio é enterrá-lo." Disse o Mediador.
"Enterrá-lo? E por que faríamos isso?" perguntou Karl, ainda mais espantado.
"Assim como você, como Sam, como estes homens e como todo o povo desta vila, aquele monstro era uma pessoa. Ele merece e deve ser presenteado com um sepulcro de respeito." Sustentou o velho. "Não é assim que agimos, filho Karl, e você...".
"Não me chame de filho, não chame isso de filho. Isso era um monstro! Não era um homem, não tinha mais nada de homem nele, ainda mais agora. Veja só aquilo, parece com algum de nós? Se ali já houve um homem, este homem foi arrancado de lá! Se aquilo fosse uma pessoa, eu duvido que tivesse feito o que fez com Jori, e duvido que estaríamos aqui agora." assegurou Karl, aumentando o tom de voz. "Mas você é o líder, não é? Faça o que achar melhor."
Karl se afastou e desejou sair dali. Sam o olhava abismado, sempre soube que Karl não era afeiçoado ao Mediador, mas desconhecia este novo lado.
"Filhos, eu e meus noviços assumimos daqui. Vou providenciar um enterro digno para ele e desejar que trilhe o caminho para os Salões Dourados. Vocês, caçadores, terão uma longa noite hoje, então espero que pela graça divina vocês vão e voltem bem da floresta!" afirmou o Mediador. "Todos, tomem cuidado, não se exponham ao Mal, não deixem que ele domine vocês, protejam suas famílias e o que é seu. Pensem no que aconteceu hoje como um aprendizado e um sinal, um sinal de que esta provação serve para nos manter firmes e fortes."
Todos se foram, Karl estava novamente enfurecido e a aquela conhecida dor de cabeça lhe dava as boas vindas. Sam parecia outra vez desafeiçoado dele. Nem dava para acreditar que já estavam quase no meio da tarde ao saírem. A noite seria longa, a caça seria difícil. O frio era lacerante, o medo era inquietante, a cisma era persistente.
Karl não estava ansioso, ninguém estava, na verdade, seu corpo clamava por uma boa cama e longas horas de sono. A neve ainda caía e agora o céu também estava esbranquiçado, contribuindo para a sobriedade da ocasião.