Capítulo 4 As Marcas Invisíveis

O sol invadia o quarto com uma leveza que me parecia estranha. A luz não machucava os olhos, mas incomodava a alma. Dormi pouco, e o pouco que consegui foi entre sobressaltos. Ainda não me sentia em paz. Nem livre.

Milena entrou no quarto sem bater, carregando uma blusa de manga comprida, calça social escura e uma caixa pequena nas mãos.

- Trouxe algo pra você usar. Ela disse, colocando a roupa em cima da cama. - É simples, mas elegante. E cobre tudo o que precisa ser coberto.

Ela se aproximou, sentou ao meu lado. Abriu a caixinha: base, corretivo, um pó leve e batom nude.

- Você vai conseguir, Mariah. Sua voz era suave, mas havia firmeza ali.

Assenti, mesmo sem acreditar totalmente.

Ela levantou meu queixo com cuidado, analisando meu rosto com os olhos apertados. Com delicadeza, começou a aplicar a maquiagem, como se cada camada de base fosse uma armadura invisível contra o passado.

- Ele bateu tão forte aqui! Sussurrei, quase sem querer, tocando a lateral do rosto.

Milena parou por um instante. Respirou fundo.

- E agora você vai se levantar mais forte ainda.

O silêncio tomou conta do quarto enquanto ela terminava de esconder as marcas. Mas havia algumas que nem a melhor maquiagem do mundo seria capaz de apagar.

- E se ele me encontrar? perguntei, encarando meu reflexo no espelho.

- Ele não vai. Milena respondeu com convicção.

- E se tentar eu mesma dou um jeito.

Sorri, leve. Pela primeira vez, o espelho mostrava uma mulher que não parecia quebrada. Só cansada. Mas de pé.

- Pronta? ela perguntou

Engoli seco. Levantei. Vesti a roupa que ela trouxe. A blusa cobria os hematomas nos braços, e a calça escondia os roxos nas pernas. O cabelo solto ajudava a disfarçar o resto.

- Pronta! eu disse, mesmo sem ter certeza.

******

O carro chegou poucos minutos depois. Mariana me abraçou na porta, sem dizer nada. Milena apenas me lançou um olhar cúmplice, como se dissesse:

lembre-se de quem você é.

A porta do carro fechou.

E ali, no silêncio entre o barulho do motor e o som da cidade acordando, eu senti que o novo capítulo estava prestes a começar.

Eu não sabia o que me esperava do outro lado dos portões da mansão Helk.

Mas sabia que, desta vez, eu não iria recuar.

Nem que isso significasse encarar outro tipo de perigo aquele que nos atrai antes mesmo de nos destruir.

*****

O carro estacionou diante da mansão Helk com a mesma imponência do dia anterior. Mas, desta vez, o portão não parecia apenas um limite físico, era um limiar entre o que fui e o que precisaria ser dali em diante.

O motorista abriu a porta para mim. Desci com cautela, ajeitando a blusa nas mangas, sentindo o tecido esquentar sob o sol fraco da manhã.

A porta principal se abriu antes que eu chegasse a tocá-la.

Uma mulher de meia-idade, expressão rígida e roupas impecáveis, me esperava na entrada.

- Senhorita Torres, imagino! ela disse. - Sou Esther, governanta da casa. O senhor Helk pediu que eu a conduzisse até o quarto e lhe mostrasse os deveres com a menina.

Assenti com um sorriso contido.

- Obrigada!

Caminhamos pelos corredores amplos e silenciosos. Cada passo fazia eco no mármore do chão, como se tudo ali gritasse ordem, poder e silêncio. Até que paramos diante de uma porta branca, adornada com pequenos adesivos coloridos. Era um contraste tocante com o resto da mansão.

Esther bateu levemente.

- Leonor? chamou com suavidade.

A porta se abriu.

Uma garotinha de olhos curiosos, cabelos castanhos claros presos em dois coques tortos e um vestido de princesa apareceu. Ela me olhou com cautela.

- Essa é a nova babá. disse Esther. - Mariah.

Me abaixei até a altura da menina.

- Oi, Leonor. Posso entrar?

Ela hesitou por um segundo, depois assentiu timidamente.

Entrei em seu quarto, repleto de brinquedos organizados demais para serem usados com frequência. Sentei-me no tapete, esperando que ela se aproximasse por vontade própria. E, pouco a pouco, ela se aproximou. Primeiro com os olhos. Depois com o corpo. Até me entregar um lápis de cor.

- Você sabe desenhar? ela perguntou, baixinho.

- Um pouquinho. respondi, pegando o lápis.

E ali, entre rabiscos de castelos tortos e príncipes de capa rosa, eu percebi que não era apenas Leonor que precisava de alguém. Eu também precisava dela.

*****

Do alto da escada, atrás da sombra da parede, Leon observava.

Os olhos escuros fixos em Mariah, os braços cruzados sobre o peito. Ele não dizia nada. Mas o silêncio dele dizia tudo.

Avaliava.

Estudava.

*****

Eu sabia que conquistar a confiança de Leonor não seria algo que viria de um sorriso ou de palavras doces. Crianças sentem.

Crianças veem o que os adultos tentam esconder. E aquela menina já havia visto demais.

Carregava nos olhos um silêncio que doía o mesmo que um dia também habitou os meus.

Mas eu estava determinada.

Queria que ela soubesse, sem que eu precisasse prometer, que poderia contar comigo. Queria que ela sentisse, com o tempo, que eu não iria embora. Que não ia machucar. Que não ia gritar. Que não ia mentir.

Então, me entreguei.

Durante dias, fiz do meu tempo ao lado dela um ritual silencioso de cura para ela e, sem perceber, também para mim.

Descobri que Leonor amava música.

Que cantar baixinho fazia seus olhos brilharem.

Que suas mãos pequenas balançavam com leveza quando dançávamos pelos corredores da mansão Helk como se o mundo não estivesse lá fora esperando para nos engolir.

Ela era luz. Uma luz tímida.

Mas que se expandia quando me via abrir os braços e girar com ela, mesmo com o chão frio sob os pés.

Exploramos a mansão juntas.

Os cômodos grandes e silenciosos deixaram de ser frios.

As paredes altas deixaram de ser ameaçadoras. Entre sorrisos e passos de dança improvisados, transformamos o vazio em lar. A mansão deixava de parecer uma prisão de mármore e passava, por breves instantes, a ser um palco. Nosso palco.

Leonor ria. Ria alto. Com gosto.

E quando ela ria, eu sentia que estava reconstruindo algo dentro de mim também.

Como se cada gargalhada dela colasse uma parte minha que Daniel tentou quebrar.

Eu não precisava ser perfeita. Nem forte o tempo todo.

Eu só precisava estar ali.

E estar de verdade.

E foi isso que fiz.

Com cada nota cantada, com cada pequeno rodopio, com cada história contada à meia-luz antes de dormir.

Eu estava dizendo, sem palavras:

Você está segura.

Eu também estou tentando estar.

            
            

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