Capítulo 2 Sapatos Rasgados, Olhar Brilhante

O centro cultural ficava no bairro do outro lado da cidade, numa antiga escola desativada que fora transformada em espaço de oficinas culturais. As paredes estavam grafitadas com frases de esperança e arte vibrante, como se cada pincelada gritasse que havia beleza além da rotina cinzenta dos subúrbios.

Lívia chegou ao lugar com os sapatos furados e o coração aos pulos. O dia estava quente, e o calor parecia grudar em sua pele como um lembrete do esforço para chegar até ali. Quatro conduções, um pão com margarina no bolso, e a determinação de quem sabia que aquela poderia ser sua única chance.

Antes de entrar, Lívia parou diante dos portões da antiga escola. Respirou fundo, tentando acalmar o tremor nas mãos. Viu meninas chegando acompanhadas pelos pais, de carro, com mochilas e tênis que custavam o equivalente a meses do salário de sua mãe. Sentiu um aperto no peito, mas lembrou-se das palavras de Dona Zefa naquela manhã: "Quem anda com a verdade não tropeça na mentira dos outros."

Entrou no prédio devagar, como quem pisa em território sagrado. Nos corredores, pôde ouvir as vozes alegres das outras meninas que já aguardavam o início das aulas. As salas, com seus pisos de madeira desgastados pelo tempo, eram agora espaços de sonhos em construção.

Quando finalmente entrou na sala de espelhos, sentiu o impacto daquele ambiente tão novo e ao mesmo tempo tão desejado. As outras meninas já estavam posicionadas em fila, com roupas esportivas novas, cabelos presos e olhares confiantes. Lívia, com sua camiseta desbotada e calça de moletom herdada de um primo, sentiu-se pequena e deslocada naquele universo reluzente.

A instrutora, uma mulher alta de pele negra e presença forte chamada Renata, caminhava entre as meninas, corrigindo posturas e ajustando detalhes. Quando passou por Lívia, lançou-lhe um olhar penetrante, mas não disse nada.

- Coloquem-se na linha e caminhem, uma de cada vez. Não quero que apenas andem. Quero que mostrem quem vocês são sem dizer uma única palavra - anunciou Renata, com voz firme.

As meninas começaram a desfilar uma a uma. Lívia observava cada passo atentamente, assimilando cada movimento, cada postura. Algumas eram naturais, outras exageravam tentando imitar modelos famosas. Ela se perguntou como poderia mostrar quem era sem expor suas inseguranças.

Quando chegou sua vez, Lívia fechou os olhos por um segundo, respirou fundo e avançou com passos decididos. Não eram perfeitos, mas havia algo diferente na forma como caminhava. Seu queixo estava levemente erguido, e em seus olhos brilhava uma determinação silenciosa que capturou a atenção de Renata.

Ao fim da rodada, Renata aproximou-se dela:

- Você. Como é seu nome?

- Lívia Marine.

Renata a analisou rapidamente de cima a baixo e sorriu com respeito:

- Sapatos rasgados, mas olhar brilhante. Você tem uma história pra contar, não tem?

Lívia assentiu com os olhos úmidos. Pela primeira vez, alguém olhava para ela sem pena ou deboche. Pela primeira vez, viu respeito refletido em outro olhar.

Desde aquele dia, Lívia passou a frequentar o centro todos os sábados. Solange fazia milagres com o orçamento da casa para garantir as passagens. Dona Zefa ajudava como podia, reformando roupas antigas para que Lívia pudesse se sentir mais confiante. Cada sábado era um desafio novo, mas Lívia voltava para casa com um brilho renovado nos olhos e uma sensação de pertencimento que nunca havia experimentado.

Um sábado em especial marcou uma grande mudança. Renata anunciou, ao fim do treino, que as melhores alunas participariam de uma apresentação para uma agência parceira. Seria a primeira vez que Lívia desfilaria oficialmente para alguém importante do mundo da moda.

A notícia se espalhou rapidamente e trouxe consigo a inveja. Algumas meninas começaram a cochichar pelos cantos, lançando olhares de reprovação para Lívia.

- Você acha mesmo que vão escolher você, com essa roupa velha? - provocou Clara, uma das garotas mais populares do grupo.

Lívia não respondeu. Já aprendera com a vida que raiva alheia era muitas vezes apenas medo disfarçado. Sorriu por dentro e continuou ensaiando ainda mais determinada.

No dia da apresentação, o centro cultural estava irreconhecível. O palco improvisado no saguão tinha luzes e cadeiras enfileiradas para os convidados. Lívia sentiu um arrepio percorrer sua espinha ao ver tudo aquilo. Solange não conseguira folga no trabalho, mas deixou um bilhete escondido no bolso da filha:

"Brilha, minha menina. Não importa o que aconteça, teu valor não cabe em passarela nenhuma."

Sentada no camarim improvisado, Lívia leu o bilhete e permitiu-se chorar rapidamente, sentindo cada palavra da mãe como um abraço apertado. Limpou as lágrimas e respirou fundo, recuperando sua coragem.

Quando chegou sua vez, Lívia subiu ao palco com um vestido simples, confeccionado por Dona Zefa, com detalhes de renda inspirados nas revistas de moda que folheava sempre que podia. Seus passos eram seguros, seu olhar firme como nunca. Desfilava como se estivesse na passarela mais importante do mundo.

Ao final da apresentação, um representante da agência, um homem chamado Marcelo, pediu para falar com ela:

- Você tem algo raro, Lívia. Não é só beleza. É presença. Gostaria muito de ver você novamente.

Lívia não conseguiu responder, apenas assentiu, emocionada.

Na volta para casa, apesar dos pés doloridos e da barriga roncando, ela sentia-se leve, como se pudesse flutuar. Aquela sensação era algo novo e maravilhoso: o sentimento de estar exatamente onde deveria estar.

Naquela noite, antes de dormir, Lívia pegou seu caderno e escreveu:

"Hoje eu fui vista. Mais importante que isso: eu me vi. O sonho está só começando, e eu estou pronta para seguir adiante, seja qual for o caminho."

E com esse pensamento, Lívia Marine adormeceu sorrindo, pronta para encarar o que viesse pela frente.

            
            

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