Capítulo 5 Entre Costuras e Esperança

Era tarde de sábado e o sol queimava o chão de terra do quintal quando Lívia entrou pela portinha de madeira da casa de Dona Zefa. O cheiro de tecido novo e café passado enchia o ar. Ali, naquele cantinho cercado por novelos de linha, moldes antigos e uma máquina de costura que gemia como senhora cansada, o mundo parecia fazer mais sentido.

- Chegou, minha boneca! - disse Dona Zefa, enxugando as mãos no avental estampado com margaridas. - Hoje a gente vai transformar retalho em arte!

Lívia sorriu, deixando a mochila no canto e pegando o caderninho de croquis que usava para rabiscar ideias de roupas. Cada página era uma mistura de sonho e esperança: vestidos longos, jaquetas ousadas, peças que mesclavam cultura popular com alta costura. Ela não tinha formação, mas tinha olhar. E mais que isso: tinha vontade.

Dona Zefa, que fora costureira durante mais de quarenta anos, via em Lívia uma continuação de si mesma - só que com brilho nos olhos e pernas prontas para o mundo. Elas trabalhavam lado a lado, entre costuras e histórias. Lívia ouvia fascinada os causos da juventude da vizinha, das festas, dos casamentos que vestira, dos tecidos importados e das noivas nervosas.

- E pensar que eu já fiz vestido até pra filha de deputado. Mas olha... - disse ela, segurando uma barra para alinhavar - nunca vi ninguém costurar com a alma como tu, menina.

Naquela tarde, estavam criando o vestido que Lívia usaria no desfile interno do mês seguinte. Era um modelo ousado: uma mistura de algodão cru com renda reciclada, inspirado nas folhas das árvores do bairro. Lívia queria mostrar que beleza também podia nascer do chão seco da periferia.

Enquanto trabalhavam, Solange chegou do restaurante. Estava exausta, com os pés doloridos, mas ao ver a filha sorrindo entre tecidos, deixou-se contagiar.

- Vocês duas vão acabar montando um ateliê - brincou, tirando os sapatos na porta.

- Quem sabe um dia? - respondeu Dona Zefa, piscando para Lívia.

À noite, depois do jantar simples com arroz, feijão e ovo frito, Lívia ficou um tempo no quintal olhando o céu. Pensava em como as estrelas pareciam costuras brilhantes unindo os pedaços de um mundo que ainda precisava se encaixar.

Ela sabia que sua vida não mudaria da noite pro dia. Sabia que ainda enfrentaria muitas portas fechadas, muitos "nãos", muitos olhares atravessados. Mas também sabia que tinha ao seu lado pessoas que acreditavam nela. E isso era seu maior tecido: o afeto.

Na semana seguinte, no centro cultural, Renata anunciou que um grupo de empresárias da área de moda social estaria visitando o espaço. Elas estavam à procura de jovens talentos para uma campanha publicitária sobre representatividade e diversidade. Seria uma grande vitrine para quem fosse selecionado.

A notícia fez o coração de Lívia bater mais forte. Mas ao mesmo tempo, reacendeu seus medos.

- E se escolherem só as meninas mais arrumadas? - sussurrou para Giovana, a colega que virara amiga.

- Se escolherem por roupa, não vale a pena. Você vai entrar com sua alma - respondeu a amiga, firme.

No sábado do evento, Lívia vestiu o novo modelo que criara com Dona Zefa. Colocou um colar simples feito de contas recicladas e prendeu os cabelos em duas tranças laterais. O espelho do centro a refletia de forma diferente agora - não como uma menina tentando parecer algo que não era, mas como alguém orgulhosa do que carregava.

Durante a apresentação, ela falou sobre sua peça, seu bairro, e o processo criativo que envolvia reutilizar materiais que seriam descartados.

As empresárias, sentadas com pranchetas nas mãos e olhares atentos, anotavam tudo. Uma delas - uma mulher de turbante colorido chamada Cíntia - a interrompeu no final:

- Você acredita que pode mudar o mundo com o que veste?

Lívia pensou por um instante antes de responder:

- Não acho que a roupa muda o mundo. Mas acho que a gente muda quando entende que pode contar uma história com ela. E isso, sim, muda tudo.

O silêncio que se seguiu foi respeitoso. Um silêncio que dizia: essa menina tem algo a dizer.

Na segunda-feira, Renata chamou Lívia em particular.

- Parabéns. Você foi uma das selecionadas para a campanha. Vamos começar os ensaios na próxima semana.

Lívia quase não acreditou. Sentiu vontade de correr até a escola e gritar. Mas apenas sorriu, emocionada.

Naquela noite, em casa, abraçou a mãe com força.

- A gente conseguiu, mãe. A gente costurou esse sonho juntas.

E Solange, com os olhos marejados, respondeu:

- E ele ainda vai te vestir por muito tempo, filha.

                         

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