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A madrugada encontrava Isadora acordada, sentada no chão da sala com o baú da avó aberto diante dela. A chave que Rafael deixara no piano encaixara-se perfeitamente na fechadura ornamentada, como se tivesse sido feita para isso.
- "Alguns segredos não foram feitos para serem descobertos" - ela murmurou, repetindo as palavras enigmáticas do pianista enquanto puxava o cadeado.
O mecanismo cedeu com um click suave.
Dentro, sob o diário de couro, um pacote de cartas amarradas com fita desbotada repousava sobre um velho lenço de seda. Isadora puxou o primeiro envelope com mãos trêmulas. O papel amarelado cheirava a lavanda e tempo.
"Minha querida Lívia,
Hoje sonhei com o mar de Vila das Marés outra vez. Com você sentada na varanda, esperando por mim. Prometo que voltarei antes que as amendoeiras floresçam. Mantenha nossa música viva.
Sempre teu,
Daniel"
A data no canto superior - *12 de março de 1954* - fez seu coração acelerar. Três meses antes da foto que encontrara.
- Quem diabos era esse Daniel? - Clara, que insistira em ficar, espreitava por sobre seu ombro com uma xícara de chá fumegante.
- Alguém que minha avó amou - Isadora virou a carta. No verso, uma partitura minúscula estava rabiscada à mão.
O som de passos na varanda fez ambas se arrepiarem.
Antes que pudessem reagir, uma sombra cruzou a janela. A maçaneta da porta frontal girou lentamente.
- Rafael? - Isadora levantou-se, segurando a carta contra o peito.
A porta se abriu, mas não revelou o pianista. Um vento gelado varreu a sala, apagando as velas e espalhando as cartas pelo chão. Quando a luz da lua iluminou novamente o vão da porta, uma figura alta e esguia ali estava.
- Você deveria ter deixado o baú fechado - a voz de Rafael soou grave, diferente.
Ele usava agora um sobretudo escuro, e seus olhos verdes refletiam a luz como os de um gato noturno. Em sua mão, um envelope lacrado com o mesmo símbolo que Isadora vira no diário.
- Como você tem isso? - ela exigiu, recuando.
- Sua avó me deu. Para você. - Ele estendeu o envelope. - Mas só quando você estivesse pronta.
Clara agarrou o braço de Isadora.
- Isso está ficando bizarro demais. Ele não devia saber que você abriria o baú hoje.
Rafael sorriu, um gesto carregado de tristeza.
- Eu sempre soube. Assim como sabia que você voltaria neste verão. - Seus dedos traçaram o contorno do piano invisível no ar. - A música nos conta tudo, Isadora. Você só precisa aprender a ouvir.
O envelope que ele entregou queimava entre os dedos de Isadora. A caligrafia era inconfundível:
"Para Isadora, quando encontrar a coragem de perguntar sobre Daniel."
Dentro, apenas três itens:
Uma foto de Daniel e Lívia abraçados diante de um piano idêntico ao da praia.
Um bilhete: "Ele voltará com a maré cheia."
Um pedaço de partitura com uma anotação: "Toca para ela, Rafael."
Quando Isadora levantou os olhos, Rafael já desaparecera novamente. Na mesa, porém, uma única tecla de piano - a nota Lá - brilhava sob a luz do luar.
E do lado de fora, as ondas quebravam com força incomum, como se o próprio mar respondesse ao chamado daquela música esquecida.