Capítulo 5 O Preço da Música Proibida

A madrugada encontrava Isadora trancada no sótão da Casa das Conchas, os joelhos dobrados contra o peito enquanto a tempestade lá fora sacudia as telhas. A bala deformada rolava entre seus dedos, captando a luz fraca da lamparina. Doze horas haviam se passado desde que fugiram da cabana, e ainda conseguia sentir o gosto salgado do medo em sua boca.

Clara dormitava no sofá abaixo, exausta após horas de discussões acaloradas. "Você está vendo coisas que não existem", dissera ela. "Rafael não estava na água, Isadora. Ninguém pode sobreviver a uma correnteza daquelas."

Mas Isadora sabia o que vira. Assim como sabia que as marcas no pulso de Rafael combinavam perfeitamente com os ferimentos de Daniel na foto. Coincidências demais. Segredos demais.

Uma batida na vidraça a fez saltar. Lá fora, um pássaro negro batia as asas contra o vento, algo brilhante preso em seu bico. Quando abriu a janela, o animal deixou cair seu prêmio no peitoril - uma pequena chave de latão, idêntica à que abrira o baú.

Atrás dela, uma das partituras encontradas no piano começou a vibrar, como se tocada por mãos invisíveis.

O Arquivo dos Condenados

A prefeitura de Vila das Marés cheirava a mofo e mentiras velhas. Isadora esfregou os braços, tentando ignorar os olhares curiosos dos funcionários enquanto o velho arquivista, Sr. Batista, arrastava os pés entre as estantes.

"Acidente do faroleiro, você disse? 1954?" Seus dedos nodosos percorreram as pastas empoeiradas. "Ah, aqui está. Caso 1274. Homem identificado como Daniel Costa, encontrado na base da falésia oriental na manhã de 13 de julho."

O relatório estava incompleto, páginas arrancadas e manchadas de café. Mas a foto anexada era inconfundível - o mesmo homem da foto em seu baú, agora com um buraco de bala entre os olhos.

"Morreu antes de chegar ao hospital", o velho comentou, virando a página. "Mas aqui tem uma curiosidade... O corpo desapareceu da morgue na mesma noite."

Isadora sentiu um arrepio percorrer sua espinha. "Desapareceu?"

"Parece que alguém não queria ele autopsiado." O arquivista abaixou a voz. "Dizem que o prefeito da época, Almirante Braga, mandou encerrar o caso no mesmo dia."

O nome ecoou na mente de Isadora. Braga. O mesmo sobrenome do atual prefeito.

Quando uma das páginas se soltou, revelou um documento oculto colado atrás - uma lista de nomes com a inscrição "Operação Sereia". Ao lado de Daniel Costa, uma anotação: "Eliminado por conhecimento da música proibida".

E no final da lista, escrito à mão: "Rafael Calebe - próximo?"

A Serenata dos Mortos

A casa de Rafael ficava à beira-mar, uma construção estreita de madeira escura que parecia desafiar as leis da física ao permanecer de pé após décadas de tempestades. A porta estava entreaberta, balançando com o vento.

Dentro, o silêncio era absoluto.

Isadora percorreu os cômodos com passos cautelosos, sua lanterna revelando detalhes perturbadores: uma xícara de chá ainda morna na mesa. Um piano vertical com a partitura de uma música chamada "Serenata dos Mortos" aberta no atril. E na parede da sala - fotos.

Centenas delas, dispostas em um padrão circular. No centro, uma imagem desbotada de Daniel e Lívia diante do piano da cabana. Ao redor, fotos de pessoas que Isadora reconheceu - o prefeito atual em sua juventude, o chefe da polícia local, o dono do hotel.

Todas marcadas com um carimbo vermelho: "Silenciado".

Foi então que ouviu - três notas tocadas suavemente no piano atrás dela.

"Você não devia ter vindo aqui."

A voz de Rafael veio da escuridão do canto, mas quando Isadora girou, viu apenas seu reflexo no espelho manchado. Até que, lentamente, outro rosto apareceu atrás do seu - Daniel, com seu uniforme militar ensanguentado.

"Eles matam qualquer um que ouvir a música completa", sussurrou a aparição. "Sua avó sabia disso. Por isso a escondeu."

Quando Isadora tocou o espelho, a imagem se dissolveu em névoa, revelando uma porta secreta atrás do móvel. Dentro, um rádio antigo ainda transmitindo estática, e uma gravação em loop:

"Braga sabe. Destruam as evidências antes que ela volte."

O Baile dos Fantasmas

A maré alta trouxe consigo um nevoeiro espesso que engoliu as ruas da vila. Isadora corria em direção ao porto, a chave do pássaro queimando em seu bolso. Clara a esperava no barco, como combinado.

"Tem alguém nos seguindo", ela alertou, ajudando Isadora a embarcar.

No cais, três figuras silhuetadas observavam seu escape. Um deles carregava algo longo e estreito - um rifle? Uma bengala?

O motor do barco rugiu, afastando-os da costa. Foi quando a música começou.

Vinda do farol abandonado, uma valsa distorcida ecoava sobre as ondas. E na varanda circular, figuras dançavam - Daniel e Lívia no centro, rodeados por outros casais em trajes de época. Todos transparentes. Todos mortos.

"É o baile do solstício", Clara murmurou, hipnotizada. "Meu avô falava sobre isso. Onde os Braga eliminavam seus inimigos."

Entre os dançarinos fantasmas, uma figura se destacava - Rafael, de costas para elas, tocando um piano que só refletia na água.

Quando se virou, Isadora viu o sangue escorrendo de seus olhos.

"Eles estão vindo", sua voz ecoou sobre as ondas. "Você precisa encontrar a última partitura antes que..."

O barco deu um solavanco violento. Alguém - ou algo - havia batido no casco por baixo.

Na superfície da água, rostos surgiam entre as ondas. Homens fardados com armas antigas. Mulheres em vestidos de gala manchados de sangue.

E no centro do círculo, o Almirante Braga, segurando uma pistola fumegante e sorrindo.

A última coisa que Isadora viu antes de o nevoeiro engolir tudo foi Rafael se lançando à água, seu corpo desintegrando-se em centenas de notas musicais que se perderam no vento.

                         

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