/0/14523/coverbig.jpg?v=8e07817338d14e17a4119df14889e14c)
O vento noturno uivava como uma alma penada entre as fendas da falésia oriental. Isadora apertou o casaco contra o corpo, sentindo os primeiros pingos da maré alta atingirem seu rosto. A lanterna tremulava em sua mão, projetando sombras dançantes nas rochas escarpadas.
- "Você tem certeza absoluta de que quer fazer isso?" - Clara segurou seu braço com força, os olhos arregalados refletindo o medo que Isadora também sentia, mas se recusava a admitir.
- "Depois do que encontramos no baú? Depois daquela tecla de piano aparecer do nada na minha mesa? Eu preciso de respostas, Clara."
A trilha estreita parecia se fechar à sua frente, a vegetação rasteira arranhando suas pernas como dedos ossudos tentando detê-las. As placas de "PERIGO" estavam tão corroídas pelo sal que mal podiam ser lidas, mas a mensagem era clara: este lugar não era bem-vindo a visitantes.
Isadora parou abruptamente quando sua lanterna iluminou algo metálico entre as rochas.
- "Olha isso..."
Era uma corrente grossa, quase completamente engolida pela terra, mas quando puxou com força, um mecanismo oculto rangiu como um gemido de dor. Pedras se moveram, revelando uma escada estreita esculpida na própria rocha, que desaparecia na escuridão abaixo.
Clara engoliu seco. - "Isso não é natural. Alguém construiu isso propositalmente."
O cheiro que subia da passagem era de sal, mofo e algo mais... algo que lembrava velhas partituras envelhecidas e óleo de piano. Isadora deu o primeiro passo, sentindo a pedra úmida sob seus tênis.
- "Se não voltarmos em uma hora, chame a polícia." - Ela tentou soar corajosa, mas sua voz falhou no final.
A descida parecia interminável, cada degrau mais instável que o anterior. Quando finalmente alcançaram a base, a visão que se revelou fez ambas pararem, sem fala.
Aninhada contra a face do penhasco, quase como uma extensão natural da rocha, estava uma cabana de madeira escura. Sua varanda frontal abrigava um objeto que não pertencia àquele lugar - um piano de cauda preto, coberto de salitre mas aparentemente intacto. A maré já cobria parcialmente os pilares de sustentação, fazendo a estrutura gemer sob o peso dos anos.
- "Isso é impossível..." - Clara sussurrou. - "Como alguém trouxe um piano para cá?"
A porta da cabana estava entreaberta, balançando levemente com a brisa noturna como um convite mórbido. Isadora avançou antes que o medo pudesse vencê-la.
O interior era uma cápsula do tempo preservada. Um gramofone antigo dominava a mesa central, ao lado de duas taças de vinho empoeiradas e uma garrafa vazia. Nas paredes, fotografias desbotadas mostravam cenas de festas à beira-mar, todas datadas da década de 1950.
Mas foi o piano na varanda que chamou sua atenção. Ao se aproximar, Isadora notou que as teclas não estavam apenas desgastadas - haviam sido manchadas de escuro em padrões específicos.
- "Isso é..."
- "Sangue." - Clara completou, recuando. - "Isadora, acho que não devíamos estar aqui."
Ignorando o aviso, Isadora pressionou a nota Lá, a mesma que aparecera misteriosamente em sua casa. Com um clique audível, um compartimento secreto se abriu na lateral do piano.
Dentro, três objetos que fizeram seu coração parar:
Uma fotografia de Daniel ensanguentado abraçando Lívia
Uma bala deformada
Um bilhete amarelado: "Rafael, termine o que eu não pude"
O som das ondas se intensificou de repente, como se o mar tivesse despertado. Quando correram de volta para a varanda, viram a água subindo em um ritmo impossível, já cobrindo metade dos degraus de saída.
E então viram Ele.
No meio do turbilhão, uma figura alta emergia das ondas. Rafael, mas não como o conheciam - seu sobretudo escuro grudava no corpo como uma segunda pele, e seus olhos verdes brilhavam com uma luz própria.
- "Você não devia ter vindo." - Sua voz ecoou de forma estranha, como se viesse de dentro de suas próprias cabeças. - "Agora eles sabem que você sabe."
Quando estendeu a mão, Isadora viu o que Clara não podia - as cicatrizes circulares em seu pulso, idênticas às marcas de bala na foto.
Antes que pudessem reagir, o piano atrás delas começou a tocar sozinho, três notas repetidas em um loop hipnótico. A primeira viga da cabana desmoronou com um estrondo, seguida por um segundo gemido da estrutura.
Rafael avançou contra a correnteza com força sobrenatural, seus olhos nunca deixando os de Isadora.
- "Corram!" - Ele ordenou, apontando para uma passagem lateral que não estava lá antes. - "Enquanto ainda podem."
Quando a próxima onda atingiu, Isadora teve a nítida impressão de ver outros rostos na espuma - homens armados em trajes antigos, suas feições distorcidas pelo tempo, mas suas armas ainda letais.
O último que viu antes de Clara puxá-la para a passagem foi Rafael parado entre elas e os fantasmas do passado, seus dedos movendo-se no ar como se ainda tocasse aquela música maldita.
E no caos que se seguiu, enquanto corriam cegamente pelo túnel úmido, uma certeza se instalou no coração de Isadora: Daniel não tinha morrido por acidente.
Ele fora assassinado.
E os assassinos ainda estavam na vila.