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O ônibus seguia firme pela estrada, cortando a escuridão densa da madrugada como uma flecha silenciosa. O ronco do motor se misturava ao sutil ranger dos pneus no asfalto ainda morno, traçando uma linha reta entre o passado que deixei para trás e o desconhecido que me aguardava à frente. O balanço suave da viagem parecia embalar meus pensamentos, enquanto a janela fria contra minha testa me lembrava que aquilo era real, eu estava mesmo indo.
Encostado na janela, os olhos fixos no horizonte, vi as primeiras luzes de Brasília começarem a despontar como vaga-lumes urbanos. Pequenos pontos tremeluzentes que, aos poucos, iam desenhando o contorno de uma cidade que, por tantos anos, existiu para mim apenas como símbolo, uma referência geográfica e política, mas também um espaço mítico, quase irreal, onde decisões distantes moldavam vidas comuns. Inclusive a minha.
Era estranho, quase surreal, ver com meus próprios olhos o que antes era apenas imagem de jornal, clichê de livro didático, cenário de escândalos e discursos. Brasília sempre me pareceu mais conceito do que lugar. Uma utopia arquitetônica. Um plano de cidade idealizada, nascido de uma prancheta e do sonho de um país moderno. E agora ela estava ali, diante de mim, se revelando aos poucos, silenciosa, grandiosa, como um segredo prestes a ser sussurrado, e não gritado.
As formas icônicas da cidade surgiam uma a uma sob a luz amarelada e difusa dos postes. O Congresso Nacional, com suas cúpulas gêmeas, se destacava como dois olhos atentos, talvez julgadores, observando a chegada dos que ousam atravessar suas fronteiras. A Catedral de Brasília, com suas colunas brancas erguidas ao céu, parecia feita para acolher tanto a fé quanto a dúvida. Ao longe, o Palácio da Alvorada repousava à beira do lago como um barco de concreto, eternamente ancorado em águas que não se movem. Cada construção carregava não só história, mas expectativa - como se eu precisasse merecer estar ali.
Olhei para o relógio do painel: 01:17. A madrugada era densa e imóvel. Poucos carros deslizavam pelas avenidas largas e perfeitamente simétricas. O vento seco penetrava pelas frestas da janela, trazendo consigo o cheiro de terra úmida de irrigação, resquícios de eucalipto e o perfume distante do concreto que ainda conservava o calor do dia anterior. Era como se a cidade respirasse lentamente, em silêncio, enquanto dormia.
Uma moto passou, riscando o asfalto com seu ruído breve, e logo o silêncio retornou. De um posto distante, um rádio tocava baixinho uma canção antiga, bossa nova, talvez bolero, tão suave que parecia estar vindo de dentro de mim. Era como se Brasília tivesse sua própria trilha sonora, íntima e discreta, feita para aqueles que decidem escutá-la com atenção. Como dizia Renato Russo, "só quem se mostra se encontra, por mais que se perca no caminho". E eu me sentia exatamente assim, perdido por escolha, à procura de um reencontro.
Brasília não me recebeu com alarde. Não havia buzinas, anúncios, pressa. Ela não se impunha, apenas existia. Não pedia nada. Não explicava. Apenas se mostrava, paciente, como quem espera ser compreendida em seu próprio tempo. Era uma cidade que não gritava sua presença. Sussurrava.
A rodoviária surgiu como uma ilha de luz flutuando na escuridão. O ônibus começou a desacelerar, os freios chiaram com suavidade, e veio aquele sacolejo final, um gesto familiar a quem viaja com frequência. Quando desci, o asfalto áspero sob minhas botas me deu uma estranha, quase absurda, sensação de pertencimento. Como se aquele simples gesto, pisar naquela cidade pela primeira vez, fosse um ritual invisível, um pacto silencioso com algo maior do que eu conseguia compreender.
Ao redor, mochileiros de olhos cansados, trabalhadores iniciando turnos, passageiros dispersos em direções opostas. Despedidas contidas, reencontros silenciosos. Vozes abafadas, malas deslizando pelo piso em uníssono, tudo era movimento e pausa ao mesmo tempo. Uma coreografia desordenada e bela de chegadas e partidas.
Eu respirei fundo. Estava ali. Inteiro. Desarmado. Presente. Vivo.
Minha bagagem era leve: uma mochila nas costas e nenhum plano rígido. Nenhuma âncora. Queria ser ágil, fluido, adaptável. Brasília me recebeu sob um céu limpo, onde as estrelas pareciam mais distantes do que em qualquer outro lugar, e mesmo assim mais presentes. Como se observassem do alto, esperando para testemunhar cada escolha minha daqui para frente.
Os outros passageiros desapareceram rapidamente, como formigas seguindo caminhos invisíveis que já conheciam de cor. Eu, por outro lado, fiquei parado. Sentindo o ar seco da madrugada tocar meu rosto como um sussurro de boas-vindas. Não havia pressa, e pela primeira vez em muito tempo, isso não me causava culpa.
Minhas pernas me levaram até uma padaria acesa, discreta, escondida entre sombras e muros baixos. As luzes quentes do interior recortavam a escuridão como um farol doméstico. E lá dentro, o cheiro inconfundível de café fresco e pão na chapa, um aroma que remonta à infância, às manhãs sem pressa, às pausas necessárias.
Entrei sem hesitar. Pedi um café forte. Pão na chapa. Sentei-me perto da janela e observei. Do lado de fora, Brasília ainda dormia. Mas dentro de mim, algo havia acordado. Algo antigo. Algo novo. Algo que não se explicava em palavras, apenas se sentia, como uma brisa que passa leve, mas muda a direção da vela de um barco.
O café forte e quente deslizou pela garganta como um gesto silencioso de acolhimento. Um primeiro pequeno presente da cidade para quem acabava de chegar.
A jornada, enfim, havia começado. E, como João de Santo Cristo quando chegou à capital, eu também carregava cicatrizes, esperanças e uma história que precisava ser reescrita. Mas, ao contrário dele, eu não trazia raiva no peito nem sede de vingança. Eu vinha em busca de paz. Vinha com a alma limpa, a mochila leve, e o coração aberto ao imprevisível.
"Ainda somos os mesmos, e vivemos como nossos pais", talvez. Mas eu queria descobrir se era possível ser diferente. Se era possível reinventar-se a partir da paisagem, da estrada e do encontro com o desconhecido.