Capítulo 5 O Primeiro Encontro

O café veio como um alívio imediato, uma espécie de âncora em meio à imensidão desconhecida daquela madrugada. O calor da xícara entre minhas mãos era mais que físico, era quase simbólico. Um primeiro fio que me prendia ao novo terreno que eu começava a explorar. O líquido amargo escorreu pela garganta como um despertar gradual, trazendo de volta meu corpo, meu foco, minha presença no tempo. A madrugada ainda era densa e silenciosa, mas algo dentro de mim já começava a se mover.

Ao meu redor, caminhoneiros, taxistas e madrugadores solitários se refugiavam no café forte e no silêncio entrecortado por murmúrios. Rostos cansados, olhares vazios, corpos que funcionavam no piloto automático enquanto o dia ainda não dava sinais de nascer. Havia ali um cansaço coletivo, quase sagrado, como se todos estivéssemos em suspensão, num intervalo entre o passado e o que ainda viria.

E naquele instante de exaustão universal, entre goles de café e bocejos contidos, ela apareceu.

Lídia.

Era o nome bordado em vermelho no peito do uniforme branco, mas parecia mais um sopro de vida no meio da névoa. Ela se movia com uma leveza descompassada ao ambiente, um brilho que destoava do cansaço generalizado. Havia nela algo de sol mesmo em meio à escuridão. Um sol silencioso, sem alarde, mas impossível de ignorar. Seu sorriso tinha a força de um amanhecer.

Observei-a por alguns instantes, quase sem disfarçar. Os cabelos castanhos estavam presos em um coque desalinhado, e algumas mechas rebeldes escapavam, moldando seu rosto com suavidade. Os olhos vivos, grandes, atentos, da cor do mel sob luz dourada, brilhavam mesmo sob o amarelo pálido dos refletores do balcão. Sua pele trazia o tom da terra aquecida, e os lábios carregavam um vermelho discreto, mas cheio de presença. Era um detalhe, um gesto, um traço que dizia muito mais do que qualquer palavra.

E então ela veio até mim.

- Quer mais um café? - perguntou, já reabastecendo minha xícara antes mesmo que eu respondesse.

Sorri, meio surpreso com a espontaneidade, e respondi com um aceno breve. O gesto dela era simples, cotidiano, mas me pareceu carregado de significado. Como se me dissesse, sem palavras: "Você está aqui. Eu percebi."

Conversamos. Primeiro, sobre amenidades. Depois, sobre mim. Sobre a viagem. Sobre o projeto dos 45 destinos. Sobre por que Brasília havia sido escolhida como o primeiro passo. Lídia ouvia com atenção genuína, como se minha história não fosse mais um relato qualquer entre tantos que passavam por ali todas as noites.

Era como se, por um momento, aquele balcão tivesse se tornado uma ilha fora do tempo.

Observei seus gestos com fascínio quase infantil: o modo como arqueava a sobrancelha quando se interessava por algo, como os dedos tamborilavam discretamente no balcão, como o riso vinha fácil, mas nunca era automático. Tudo nela parecia pulsar, vibrar em uma frequência que me tirava do torpor da madrugada.

E, de alguma forma, o café parecia ainda mais saboroso com ela por perto.

A vida é feita de breves momentos que, quando colhidos com atenção, tornam-se eternos. E este estava entre eles. Passava das duas da manhã quando seu turno começou a dar sinais de fim. Outros funcionários surgiram, trocando uniformes, reorganizando a rotina da padaria. Lídia voltou à minha mesa uma última vez, trazendo mais uma xícara fumegante. Seus olhos ainda carregavam aquele brilho de quem estava prestes a começar, não a terminar.

- Gostei de conversar com você - disse, apoiando-se levemente no balcão. - Meu turno acabou. Saio em vinte minutos.

Segurei a xícara entre as mãos, absorvendo aquele instante.

- O prazer foi todo meu. Sua companhia deu cor a esta noite cinza.

Ela sorriu, e uma mecha solta do cabelo roçou sua bochecha. Havia uma ternura discreta em seu gesto ao prendê-la novamente atrás da orelha.

- Você vai passar o fim de semana por aqui, né? Volte. Amanhã estou de folga, mas domingo estarei aqui de novo.

- Folga? Então é por isso que está tão animada?

Ela riu, encostando o quadril no balcão com naturalidade.

- Também. Mas tem outro motivo... - disse, abaixando um pouco a voz, como quem guarda uma boa notícia. - Passei em um concurso. Hoje vou comemorar com minhas amigas no Império.

- No Império? O bar?

- O próprio. - confirmou com um sorriso orgulhoso.

Olhou para o relógio e fez uma careta.

- E falando nisso, estou atrasada.

Tirou o avental com um gesto rápido e jogou-o sobre o balcão, saindo pela porta como se o mundo lá fora estivesse à sua espera.

Fiquei ali por alguns segundos, saboreando o último gole de café, quando a ouvi do lado de fora.

- Ei! - chamou, encostando-se na janela. - Você pretende mesmo amanhecer o dia neste balcão gelado?

Levantei os olhos. Lídia estava ali, sob a luz fria do poste, o rosto meio na sombra, meio iluminado, e aquele mesmo brilho nos olhos.

- Pela manhã vou procurar hospedagem. No momento, esta é minha opção.

Ela cruzou os braços, com um sorriso travesso.

- Venha comigo. Tequila vai te cair muito melhor do que esse café ralo.

Por um instante, olhei ao redor. A padaria, o balcão frio, o aroma do café que ainda pairava no ar. Mas lá fora estava Lídia, e havia algo no seu sorriso que fazia parecer absurdo ficar.

Hesitei. Só por um instante.

Mas minha primeira noite na cidade estava ganhando contornos de lembrança inesquecível. E algumas histórias só fazem sentido quando a gente resolve sair da rota.

E eu saí.

                         

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