Capítulo 3 Arte Contra a Mesmice

Tia Helena desceu as escadas como se estivesse prestes a receber um prêmio de elegância. Vestido de seda vinho, cabelo preso com aqueles fios estrategicamente soltos, perfume que parecia de novela das nove.

- Vou jantar com alguém - anunciou, pegando a clutch com um leve sorriso nos lábios.

"Alguém", nesse contexto, podia ser desde um colega de trabalho até um novo affair milionário. Com Helena, nunca se sabia.

- Tem comida pronta na geladeira. Arroz de jasmim, frango com gergelim, legumes assados. Se quiser algo diferente, o cardápio do delivery está na primeira gaveta da cozinha. E nada de sair por aí - ela apontou o dedo como uma mãe que tenta soar firme, mas não é muito boa nisso.

- Presa em uma mansão cinco estrelas. Que trágico - murmurei, fingindo desespero.

Ela riu, se aproximou e beijou minha testa, como fazia quando eu era criança.

- Tenta não destruir nada, tá? Volto mais tarde.

E saiu. Elegante. Decidida. Como se fosse fácil viver entre taças de vinho e segredos bem guardados.

Assim que a porta se fechou, tirei os tênis e subi para quarto que agora era "meu". Tomei um banho rápido, vesti um short velho e uma camiseta com estampa desbotada de banda que nem eu escuto mais, e deixei o cabelo secar ao vento.

A casa estava absurdamente silenciosa. Sem barulho de TV, sem vozes, sem nenhuma alma viva além da minha vagando por aqueles cômodos cheios de tapetes caros e móveis de revista.

Comecei a andar pelos corredores só por andar. Explorando.

O closet da Helena era maior do que eu me lembrava. Havia livros de arte na sala de estar, quadros modernos pendurados por todas as paredes, e uma poltrona esquisita que parecia um polvo estilizado.

Subi e desci as escadas três vezes, abri algumas gavetas aleatórias, investiguei o minibar -trancado, óbvio-, e acabei na varanda com o celular na mão e um copo de água com gás que achei na geladeira - porque aparentemente até a água precisava fazer pose aqui.

Sentei na rede, estiquei as pernas e abri o Instagram. E então veio o golpe.

A festa estava rolando.

Meus amigos - ou o que restava deles - estavam todos lá. O som alto escapava pelos stories, as risadas ecoavam como uma língua estrangeira que eu já não falava. Copos coloridos, luzes piscando, corpos dançando sem responsabilidade alguma.

Lívia. Guto. Yasmin. Até aquele idiota do Bernardo, que jurava fidelidade eterna e depois transou com minha melhor amiga na semana seguinte.

Todos sorrindo. Todos lá.

Sem mim.

Apertei os olhos, deslizei o dedo pela tela com um aperto no estômago. Fingia que não ligava, mas ligava. Muito. Talvez mais do que deveria.

A raiva veio sem aviso. Seca, silenciosa. Em um gesto automático, atirei o celular para longe, vendo o aparelho deslizar pelo chão de pedra até parar perto do corrimão da varanda.

- Parabéns, Isa - murmurei, me levantando para pegar o celular sobrevivente.

E foi aí que vi.

Um vulto. Não... uma perna. Depois outra. Saindo pela janela da casa ao lado.

Me aproximei, olhando entre as grades da varanda. Era um garoto, metido em um moletom largo, com o capuz quase caindo, tentando escalar o telhado de forma desajeitada, com uma mochila nas costas.

A cena era tão ridícula quanto fascinante. Ele escorregava, bufava, xingava baixinho.

Não precisei de muito para reconhecer.

Era um adolescente prestes a fugir escondido da casa do vizinho bonitão.

Parei ali, encostada na grade, observando como quem assiste a um episódio ao vivo de uma série adolescente ruim.

- Isso é uma péssima ideia, gênio - soltei, cruzando os braços.

Ele congelou no lugar. Tentou olhar pra mim, mas o capuz atrapalhou.

- Você é... deve ser a garota da bicicleta! - disse ele, - minha irmã falou sobre você.

- E você é o ninja que não sabe escalar a própria casa. Vai fugir para onde? - perguntei, arqueando a sobrancelha.

Ele hesitou. Estava com um pé no beiral e outro no telhado inclinado. A mochila balançava perigosamente nas costas.

- Não é fuga. É... missão estratégica - murmurou, claramente improvisando.

- Claro. E eu sou uma freira.

Ele bufou, nervoso.

- Preciso ir até a quadra. Só isso. Não aguento mais ficar preso. Meu pai é um general.

- Seu pai é o cara da cara fechada?

- É. O mesmo. Sr. Perfeição Imperturbável.

Sorri, surpresa com a semelhança de pensamentos.

- Bem, general ou não, se você cair daí, vai virar mingau.

- Não vou cair.

Nesse exato momento, ele escorregou, e só não caiu porque agarrou a moldura da janela de volta.

- Ok, talvez eu caia.

- Espera aí. Fica onde está.

Saí correndo, desci as escadas e atravessei o jardim, sentindo a grama gelada sob os pés. Quando cheguei até o muro baixo que separava a casa da minha tia da do vizinho, encontrei um jeito de escalar e alcançar a lateral de onde ele pendia, ainda tentando parecer confiante.

- Me dá a mochila primeiro - ordenei.

- Vai rir de mim?

- Provavelmente.

Ele me lançou a mochila, e logo depois desceu com minha ajuda. Assim que seus pés tocaram o chão, soltou um suspiro de alívio.

- Obrigado, garota-aleatória-da-varanda.

- Isadora.

- Hugo.

Nos encaramos por um segundo. - Vamos? - Hugo perguntou, olhos brilhando de expectativa.

- Vamos... o quê?

- Você vem comigo até a quadra. Não é longe. Vai ser rápido. Sem riscos, prometo.

Cruzei os braços e encarei o garoto com uma sobrancelha arqueada.

- Você me conheceu agora e já quer me arrastar para lugares suspeitos. Estou encantada com o senso de responsabilidade.

- A quadra não é suspeita, é... viva. Melhor do que essa casa silenciosa com cheiro de lavanda e repressão. Vai ser divertido.

Respirei fundo. Parte de mim dizia para ficar. Mas outra parte - aquela que sempre teve um caso mal resolvido com a palavra "autoridade" - já estava calçando os tênis.

- Se a gente for pego, você assume tudo.

- Combinado.

A quadra ficava a cinco minutos dali, escondida entre dois prédios de fachada moderna, com um muro grafitado e postes de luz que piscavam como se estivessem prestes a morrer de cansaço. A vibe era completamente diferente do resto do condomínio - como um pequeno refúgio onde os adolescentes largavam a pose de riquinhos perfeitos e só... existiam.

Tinha som tocando de um caixote improvisado, gente andando de skate, rindo alto, abrindo latas de energético e cerveja escondida. Hugo foi imediatamente recebido com toques de mão, apelidos e piadas internas. Ele parecia em casa.

E eu?

Bem, eu era a estranha. A garota mais velha, de camiseta larga e expressão meio fechada.

- Quem é ela? - ouvi uma voz feminina, atrás de mim.

Era uma menina magra, de cabelo tingido de vermelho e short jeans quase inexistente. O olhar dela sobre mim era uma mistura de julgamento e ciúmes. Logo percebi que o problema não era eu, era o Hugo. Ou melhor, a atenção dele sobre mim.

- Prima - ele respondeu, rápido. - Só está me acompanhando para garantir que eu volte vivo.

- Estou me sentindo a tia chata do rolê - brinquei, tentando aliviar o clima.

Ninguém riu, exceto um garoto de moletom verde que se apresentou como Caio.

- Relaxa, todo mundo aqui é meio deslocado de alguma forma.

O papo estava rolando quando um dos meninos - Bruno, acho - tirou uma sacola com latas de spray.

- Bora dar um tapa novo na quadra? - ele sugeriu, com um brilho nos olhos. - Arte contra a mesmice, tá ligado?

A frase me acertou em cheio.

- Tô dentro.

- Sério? - Caio perguntou, surpreso.

- Muito. Me dá uma lata.

E assim, sem planejamento, eu estava novamente diante de uma parede em branco, com uma explosão de cores nas mãos. A gente riu, pintou palavras desconexas, formas abstratas, rostos, olhos, gritos silenciosos. Meus dedos ficaram manchados, meus braços, suados. Mas minha alma? Aquela finalmente respirava.

Enquanto terminava um desenho de uma fênix estilizada, senti o olhar de Hugo em mim.

Era diferente.

Não o olhar de quem vê uma irmã mais velha de ocasião. Era admiração. Curiosidade. Confusão.

            
            

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