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Acordei com o sol atravessando as cortinas e um gosto de ressaca emocional na boca - o tipo que vem depois de fazer algo que, tecnicamente, você sabia que não deveria. Mas me recusei a carregar a culpa. Não nessa casa.
Desci as escadas como se nada tivesse acontecido. Pijama leve, camisola V-Neck e shorts seda que ganhei em um aniversário esquecido, e o cabelo vermelho preso em um coque frouxo, já meio solto de tanto que eu me revirava durante a noite.
Helena já estava na mesa, lendo o jornal como se fosse parte da decoração da casa. Elegante até com as olheiras do jantar da noite anterior.
- Bom dia - falei, tentando soar absolutamente inocente.
- Dormiu bem?
- Como um bebê - menti.
Estava passando manteiga na torrada quando a governanta da casa apareceu discretamente na porta da cozinha.
- Dona Helena... o senhor Bennett está na sala. Disse que precisa falar com a senhora.
Helena ergueu os olhos do jornal, surpresa.
- Bennett? Agora?
A governanta apenas assentiu, e Helena fechou o jornal devagar. Aquilo definitivamente não era comum.
- Fique à vontade - ela disse, saindo da cozinha com passos firmes.
Dei mais uma mordida na torrada, já prevendo que nada de bom vinha disso. Não demorou nem cinco minutos e ouvi meu nome sendo chamado lá da sala.
- Isadora, pode vir aqui um instante?
Levantei devagar, tentando não parecer nervosa. Mas quando dobrei o corredor e entrei na sala, a primeira coisa que vi foi ele.
O senhor general.
Sentado no sofá como se fosse o próprio dono do mundo. E talvez fosse. Terno escuro, cabelo impecável, expressão fechada. Mas o olhar... o olhar hesitou por um segundo quando me viu.
Talvez tenha sido meu pijama. Shorts curtos, blusa de alça, pés descalços, cabelo rebelde. Um contraste gritante com a austeridade daquele ambiente.
Dei um passo para trás, instintivamente.
- Achei que fosse só a minha tia... - murmurei.
- Que história é essa que o senhor Bennett acabou de me contar? - a voz da minha tia cortou qualquer tentativa de fuga.
Engoli em seco. Claro. Tava na cara que isso ia voltar para me assombrar.
- Olha, não foi nada demais, de verdade...
- Isadora.
Ela ergueu a mão, e eu me calei na hora.
Incrivelmente - e eu nem sei explicar o motivo -, eu respeitava minha tia Helena. Talvez fosse a forma como ela não gritava. Só olhava, falava firme, e esperava ser ouvida. E era.
Baixei os olhos, envergonhada pela primeira vez desde que tudo começou.
- Peço desculpas pelo ocorrido - ela disse, voltando-se para ele. - Prometo que não vai mais acontecer.
Ele não me olhou. Apenas assentiu, tenso.
- Eu agradeço, Helena.
Quando ele começou a se levantar, ela o interrompeu com um leve gesto:
- Só por curiosidade... qual foi o castigo do Hugo?
O homem ajeitou a manga da camisa, como se estivesse retomando o controle da situação.
- Sem celular, videogame ou internet por uma semana. E vai cuidar da irmã nesse período, todos os dias, sem sair de casa.
Helena sorriu. Mas era um sorriso maquiavélico, daqueles que te dão calafrios.
- Ótimo. Então Isadora vai ajudá-lo. Vai cuidar da Victoria junto com ele. Acompanhar nas lições, nas refeições, no que for necessário.
Virei o rosto na mesma hora.
- O quê? Tia, não! Eu-
- Sem discussão - ela disse, firme.
Ele pigarreou.
- Não é necessário, Helena. Ela...
- Ela precisa de responsabilidade - Helena interrompeu. - E você precisa de ajuda. Durante os dias úteis, quando estiver na empresa, Isadora ficará com os dois. Tenho certeza de que pode lidar com isso.
- Incrível - murmurei, cruzando os braços. - Agora sou babá de rico.
Virei de costas, ainda sentindo o olhar dele nas minhas costas, e saí da sala com o estômago revirado. Mas não era raiva.
Era vergonha. Irritação. Um calor estranho nas bochechas.
Atrás de mim, ouvi Helena suspirar.
- Me desculpe mais uma vez, John. Isadora é uma boa garota. Só está... atravessando um momento complicado.
Houve um silêncio curto, denso.
- Entendo. Com licença.
O som da porta sendo aberta e fechada ecoou pela casa.
Fui direto para meu quarto, batendo a porta com força suficiente para sacudir a moldura de uma foto da família na parede.
Agora, além de exilada, era babá de uma pré-adolescente e prisioneira de um condomínio onde o vizinho era bonito, amargo, e achava que eu era um perigo ambulante.
Talvez eu fosse.
Eu estava deitada na cama, encarando o teto como se ele tivesse todas as respostas para as perguntas que eu não tinha coragem de fazer. O sol da manhã entrava cortando meio quarto, batendo de cheio nos meus pés descalços. Tinha vestido um moletom qualquer, o cabelo ainda meio úmido do banho rápido que tomei depois da conversa constrangedora na sala. Estava tentando esquecer o olhar de julgamento do tal John, e o "babá de rico" que eu mesma declarei em voz alta, como uma sentença.
Ouvi a porta bater duas vezes antes de se abrir devagar. Era Helena.
Ela entrou com a elegância de sempre, mas com o olhar suave de quem veio para conversar, não brigar.
- Posso?
Assenti, sentando devagar na cama, abraçando as pernas.
Ela se aproximou, sentando na beirada, o vestido alinhado mesmo em um movimento tão comum.
- O que está acontecendo, Isa?
- Nada.
Ela arqueou uma sobrancelha, e eu bufei.
- Você nunca foi jovem e inconsequente? - perguntei. - Nunca sentiu vontade de gritar com o mundo e fazer besteira só para ter certeza de que você está viva?
Helena sorriu, como se esperasse aquela pergunta fazia tempo.
- Ah, minha querida... eu e o seu pai aprontamos muito.
Meus olhos se arregalaram, surpresa.
- Jura?
- Claro. Você acha que a pose dele nasceu com ele? Aquilo é treino. E culpa. - Ela riu. - Sabia que quando éramos adolescentes, quebramos um vaso caríssimo da nossa mãe? Chinês. Azul e branco, com dragões pintados. Era o orgulho da sala de estar.
Minha memória puxou o episódio.
- Ninguém nunca descobriu quem quebrou, né?
- Nunca - ela respondeu com um sorrisinho cúmplice.
- Até aquele Natal.
Helena soltou uma gargalhada contida.
- Ah, sim. Seu pai resolveu beber vinho, champanhe e whisky no mesmo copo... e no meio do discurso de "família é tudo", soltou que o vaso foi quebrado porque estávamos jogando bola na sala.
- E ele ainda culpou você, mesmo bêbado.
- Claro que sim. - Ela riu outra vez. - Ele sempre tentou parecer o mais responsável entre nós dois. Mas somos gêmeos, Isa. Um completava o caos do outro.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, sorrindo com a lembrança do meu pai jovem, livre, com outro brilho no olhar. Tão diferente do homem amargo e estourado que me largou aqui como castigo. A culpa disso era, em grande parte, da Fabiana. A madrasta do inferno. Sempre alimentando os piores lados dele. Um combustível de veneno.
- Eu conheço esse Roberto ainda - Helena disse, como se lesse meus pensamentos. - Ele ainda está lá. Só se esconde atrás dos anos, das responsabilidades e das escolhas erradas.
- Ele não escuta ninguém.
- Ele escuta você. Só que a dor entre vocês dois está alta demais agora. Vocês precisam de silêncio para se ouvirem de novo.
Helena tinha esse poder: falar bonito sem soar piegas.
- Se ele soubesse metade das coisas que você sente, talvez fosse diferente - ela completou.
Me virei de lado, encostando a cabeça nos joelhos.
- Às vezes eu queria só que ele visse quem eu sou de verdade. Não quem ele acha que eu sou por causa da Fabiana.
Helena passou a mão nos meus cabelos com delicadeza.
- Vai acontecer. Mas antes... - ela se levantou, recuperando o tom prático - você tem um turno de babá começando ainda hoje.
- O quê?
- Hugo e Victoria voltam da escola depois do almoço. Você vai estar com eles até o fim da tarde.
- Já posso vestir meu avental de Mary Poppins? - retruquei.
Ela apenas riu, já caminhando até a porta.
- E se se comportar direitinho... - ela virou de perfil, me lançando um olhar cheio de segredos - eu levo você comigo para um jantar importante hoje à noite. Gala, vestido longo, luzes, champanhe (sem misturar), música ao vivo. Tudo isso.
- Jura?
- Prometo.
De repente, o dia ganhou uma luz diferente. Claro, o "castigo" ainda estava ali, mas a perspectiva de sair da bolha, de me vestir bem, de brilhar por algumas horas no meio da elite, reacendeu algo em mim.
- Que horas saímos?
- Às oito. E vê se não assusta a Victoria. Ela é doce, mas sensível.
- Sou uma péssima influência, não uma bruxa.
- Isso ainda está em debate.
Helena piscou e saiu do quarto com a graça de quem dança por onde passa. Fiquei ali sozinha por um instante, olhando pela janela. O jardim estava calmo, sem sinal de Hugo ou John. Meu estômago revirou só de lembrar da cena da noite anterior - o olhar de John, seu terno alinhado, o jeito que falou comigo como se eu fosse uma ameaça à existência do filho dele. E agora eu teria que passar a tarde ao lado dos dois filhos dele e sozinha.
Suspirei.
Pelo menos à noite teria um vestido bonito e, quem sabe, um brinde de reconciliação silenciosa com a vida.
Ou mais caos.
Comigo, nunca dava pra saber.