Capítulo 4 A Primeira Faísca

Na volta para casa, a adrenalina ainda corria sob minha pele como eletricidade viva, fazendo cada poro da minha pele arrepiar-se ao toque da noite fria. Caminhávamos em silêncio pela rua calma do condomínio, as pedras brancas do calçamento refletindo a luz fraca dos postes como se fossem diamantes espalhados por acidente. O ar cheirava a terra molhada e a folhas decadentes, e o céu, limpo de nuvens, exibia estrelas que pareciam piscar em cumplicidade com nossa fuga. Éramos cúmplices de um segredo bobo - e ainda assim, libertador.

Uma transgressão tão banal quanto roubar um minuto extra sob o sol em um dia de inverno, mas que, naquela noite, parecia uma revolução. A sensação de liberdade era doce, quase infantil, como quebrar regras só pelo prazer de existir fora delas por alguns minutos. Como se o mundo tivesse parado para nos observar, e nós, dois fantasmas travessos, tivéssemos roubado um pedaço de tempo que não nos pertencia.

Quando chegamos na lateral da casa, Hugo se abaixou atrás de um arbusto perfeitamente podado, suas folhas verdes brilhando sob a luz artificial como se também julgassem nossa impertinência. Ele preparou-se para escalar de volta pela janela do quarto, os músculos das pernas tensionando-se sob a calça jeans de uma grife famosa.

- Me dá o pé? - ele sussurrou, os olhos brilhando sob a luz fraca dos postes, um sorriso torto desenhando-se em seus lábios. Era o mesmo olhar que ele provavelmente usava para convencer a governanta o deixar jogar videogame até mais tarde, ou fingir ir para quarto dormir para fugir pela janela.

- Com certeza vou te chantagear com isso um dia - brinquei, enfiando a mão sob sua perna para dar impulso. Meus dedos sentiram o tecido áspero da calça, a tensão de seus músculos se contraindo. - Talvez peça um carro em troca. Ou uma passagem só de ida para outro país.

Ele riu baixinho, um som rouco e abafado que se perdeu na noite, enquanto tentava manter o equilíbrio agarrando-se ao peitoril de mármore negro. Foi nesse exato momento, claro, que a sorte resolveu tirar férias.

O portão eletrônico da casa se abriu com um zumbido lento, metálico, como um suspiro de advertência. O som cortou o silêncio como um alerta, ecoando entre as paredes brancas do condomínio. Um carro preto deslizou para dentro, tão impecável quanto um caixão de luxo, brilhando como uma ameaça sob o reflexo dos postes. Elegante. Imponente. Perigoso.

Do banco do motorista saiu um homem de smoking impecável, como se tivesse saído de um catálogo de grife. O cabelo escuro estava alinhado com precisão cirúrgica, e a mandíbula rígida parecia esculpida para não expressar emoções. Sua expressão, porém, era pior: um desdém tão profundo que parecia ter sido pessoalmente traído pela existência humana. Ele nos viu - é claro que viu. Hugo pendurado como um ladrão de filmes ruins, as mãos sujas de terra agarradas ao peitoril, e eu, congelada, com a mão ainda apoiada na perna dele, como se aquilo pudesse me salvar. A cena perfeita para um colapso paterno.

- Dentro - disse o homem, a voz baixa mas cortante, como uma lâmina fria atravessando a noite.

Entramos pela porta da frente sem dizer uma palavra. A casa do homem era silenciosa, a tia Helena ainda não havia voltado. A sala parecia uma galeria de arte moderna: cheia de peças bonitas, frias, caras demais para terem alma. Cada detalhe ali parecia gritar perfeição, mas o ar estava pesado, como se o próprio ambiente sentisse a ausência de vida.

- Vai pro seu quarto - ele ordenou, sem alterar o tom.

- Pai, eu só...

- Eu disse: agora.

Hugo hesitou por meio segundo, então me lançou um olhar quase desculpado antes de desaparecer escada acima, os passos rápidos e culpados ecoando no mármore branco. Eu fiquei. Com ele. Sozinha.

O ar pesou. Não sei se foi o silêncio, o teto alto demais, ou o fato de que aquele homem me encarava como se eu fosse um vírus. O relógio marcava meia-noite, e o tique-taque soava como um metrônomo de minha condenação. Meus braços se cruzaram em um movimento automático - escudo, defesa, desafio. Talvez os três.

Ele tirou o paletó e o jogou com precisão cirúrgica sobre o encosto do sofá, como se precisasse estar no lugar certo. O gesto era quase ritualístico, como se cada movimento seu fosse uma extensão de controle. Depois, me olhou. Não com curiosidade - com cálculo. Como se eu fosse uma variável inesperada em um problema que ele achava que já tinha resolvido.

- Você acha engraçado levar meu filho para lugares onde ele pode se meter em problemas?

- Ele me levou - corrigi, seca, mantendo o olhar firme. - E foi só uma saída, ninguém morreu.

- Ainda. - Ele se aproximou, passo a passo, cada movimento deliberado, como se estivesse medindo a pressão do ar ao redor. - Você tem ideia do que está fazendo?

- Tô respirando. Algo que, aliás, seu filho parecia precisar com urgência. - Minha voz tremia, mas eu a forcei a permanecer firme.

- Não é seu papel ser a válvula de escape dele.

- E o seu é qual, exatamente? Porque, sinceramente, ele parece estar implodindo por dentro. Mas aí é mais fácil trancá-lo aqui dentro, com regras e silêncio, né? - Minhas palavras saíram afiadas, mas havia medo nelas, um medo que eu tentava disfarçar com bravura.

Ele deu mais um passo. Estava perto o bastante para eu sentir o cheiro de uísque, perfume caro e algo mais: o controle disfarçado de charme. Seu olhar era uma parede de vidro, transparente mas impenetrável. Ele não piscava. Nem uma vez.

- Olha, garota... Eu não sou gentil. Não sou paciente. E não vou permitir que você estrague o pouco de estrutura que meus filhos ainda têm.

- Uau. Um bilionário dando sermão de moral para uma desconhecida. Que cena. - Minha risada saiu curta, áspera, mas eu não me importei.

- Acha que isso é uma piada?

- Não. Mas é mais fácil rir do que gritar.

Ele me estudou por um segundo a mais, como se esperasse que eu cedesse, que baixasse os olhos, que me retraísse.

Spoiler: não aconteceu.

- Você mora aqui agora?

- Algo assim.

- Só não traga confusão para minha família.

- Pode deixar. Vou tentar não escandalizar o condomínio cinco estrelas.

Ele inspirou fundo, como se estivesse empurrando alguma palavra de volta para garganta. Virou-se e começou a subir a escada da casa dele sem dizer mais nada. Sem olhar pra trás.

Fiquei ali. No meio da sala enorme, limpa demais, silenciosa demais. O gosto do caos ainda preso na minha garganta, como se eu tivesse engolido uma tempestade.

Ele nem sabia meu nome.

Mas já me olhava como se eu fosse o início de um problema.

Saí em silêncio, atravessando o jardim de volta para casa da minha tia, sentindo cada passo como um ponto de interrogação. O caminho estava iluminado por pequenas lanternas de ferro forjado, que projetavam sombras dançantes na grama. O ar da noite agora parecia mais frio, mais afiado, como se a própria atmosfera tivesse sentido a tensão da cena.

Algo tinha começado ali. E não era só um sermão.

Era uma guerra de olhares. Um jogo de poder. E eu, sem querer, havia virado peça-chave.

            
            

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