Capítulo 3 Abadia

- De fato - respondeu minha mãe, elegante no vestido vinho. - Aquele arroz com amêndoas estava divino.

- Mas equilíbrio é sempre importante, não é, Laura? - disse meu pai, num tom leve, mas que ardia por dentro. - Principalmente quando se trata de certos exageros.

O comentário veio como uma colherada de sal no meio da sobremesa.

Abaixei os olhos. Eu tinha comido pequeno pedaço de bolo de limão, como todo mundo. Nada demais. Mas meu pai tinha um talento especial para transformar qualquer pequena liberdade em um alerta.

E então, sem querer, olhei de novo para o padre. Ele estava ao lado do arcebispo, mas os olhos dele... estavam em mim. Não exatamente. Mas sim. Era como se ele tivesse escutado a frase. Ou sentido a tensão. O olhar de Andrei era impassível - e ainda assim, havia algo na maneira como franziu levemente a testa que me fez remexer, desconfortável.

Como se ele estivesse catalogando tudo.

Desviei o olhar, sentindo um calor no rosto que não vinha das velas. Nem do vinho.

**

Pouco depois, afastada do burburinho, encontrei minha mãe perto de uma das colunas laterais, observando os convidados com um sorriso satisfeito no rosto. Um alívio suave me atravessou o peito ao vê-la assim, desperta, presente. Ultimamente, isso estava acontecendo com mais frequência do que eu esperava. Ainda era raro... mas menos raro do que antes. E, naquele instante, era o suficiente.

- Está tudo muito bonito, não acha? - disse ela, estendendo a mão para ajeitar discretamente a manga do meu hábito. - Você sempre foi boa com os detalhes. Seu pai finge que não nota, mas ele se orgulha.

Tentei sorrir.

- Acho que ele se orgulharia mais se eu tivesse recusado o bolo - falei, tentando soar leve, mas sentindo a dor ainda presa na garganta.

- ah, mas quem resiste a uma boa sobremesa, principalmente depois desse jantar maravilhoso.- Minha mãe suspira e me olha com doçura. Tocou meu braço de leve.

- Você é forte, Laura. E é boa. Não precisa se esforçar tanto para provar isso.

Aquelas palavras me pegaram de surpresa.

- Eu não...

- Eu sei - ela me interrompeu com um sorriso sereno. - Só não se esqueça de que ser correta não é o mesmo que ser dura consigo mesma.

Por um instante, me senti pequena. Não infantilizada... mas acolhida. Era raro sentir isso vindo dela, mas quando acontecia, era como um cobertor morno numa noite fria.

- E o novo padre? - minha mãe perguntou, voltando os olhos em direção à entrada do salão. - As meninas não falam de outra coisa. Acho que os cochichos já chegaram aos seus ouvidos, não é?

Assenti, quase rindo.

- Chegaram.

- Bem... não é todo dia que aparece um padre que parece ter saído de um filme europeu.

Arqueei as sobrancelhas, divertida.

- Mãe! - Eu sorrio divertida balançando a cabeça.

- Só estou dizendo que é inusitado. Ele parece... diferente. E isso sempre atrai olhares.

Não respondi. Preferi guardar o silêncio. Talvez fosse isso. Só isso. Algo diferente. E é por isso que eu não conseguia parar de pensar no modo como ele me olhara. Ou no fato de que, ao lado do arcebispo, ele parecia estar ali... e não estar.

Suspirei, deixando o olhar escorregar até a porta principal.

**

Algo naquela noite estava fora do lugar. E eu, mesmo sem entender, já sentia que era apenas o começo.

Observei o salão com os braços cruzados diante do peito, os olhos vagando pelo ambiente com a precisão de quem já conhecia cada canto daquele espaço, mas sempre se impressionava com a sua grandiosidade. As velas iluminavam suavemente o ambiente, refletindo nas paredes de pedra os seus brilhos dourados. Os arranjos de flores estavam dispostos com delicadeza, conforme os planos que eu e as outras freiras havíamos idealizado, e o cheiro da madeira, misturado com o aroma de incenso e flores frescas, preenchia a Basílica.

Era quase irônico que tudo estivesse tão perfeitamente alinhado enquanto eu, por dentro, me sentia tão deslocada. O evento estava sendo um sucesso, sem dúvidas. O arcebispo, imerso em sua conversa com os doadores, sorria em satisfação. As outras freiras circulavam pelo salão, fazendo suas funções com diligência, e os convidados pareciam maravilhados com o que a Basílica tinha a oferecer. Eu, porém, não conseguia sentir o mesmo êxtase que via nos rostos de todos à minha volta.

Talvez fosse o contraste entre o que era exigido de mim e o que sentia dentro de mim. Sempre fui boa em cumprir papéis, mas a sensação de que tudo ao meu redor estava tão distante de quem eu realmente era, de quem eu queria ser, se intensificava à medida que a noite avançava. Procurava algo que me conectasse com aquele evento, com o ambiente ao redor. Mas o que realmente me puxava era a sensação de que algo estava prestes a acontecer.

Olhei discretamente para o outro lado do salão, onde o Padre Andrei conversava com um pequeno grupo de religiosos, todos em tons de cinza e preto, com os hábitos alinhados e serenos. Ele se destacava entre eles de maneira sutil, não por sua aparência, mas pela postura calma, mas imponente. Mordi o lábio inferior sem querer, tentando não pensar mais sobre o fato de que ele era muito... bonito para um padre. O fato de ser romeno, misterioso, apenas acentuava aquilo. Eu já não sabia se aquilo era natural ou se apenas a tensão do evento estava começando a me afetar de uma maneira inesperada.

Respirei fundo, tentando afastar esses pensamentos. Ele era apenas mais um homem, como qualquer outro. Apenas um padre que logo estaria de volta à sua missão. Ele não tinha nada a ver com a minha vida, não deveria ter.

Ainda assim, não pude deixar de reparar na maneira como ele se movia, como a luz da Basílica destacava os traços fortes de seu rosto e os olhos que pareciam, por um momento, encarar algo distante.

- Irmã Laura.

A voz suave e firme da Abadessa me interrompeu, trazendo-me de volta à realidade. Virei-me e encontrei a madre Elisa, como sempre, impecável em sua postura e com um olhar atento e preciso, como se estivesse constantemente lendo a situação ao seu redor. Ela usava o hábito com a mesma solenidade de sempre, mas seus olhos, embora gentis, não deixavam de ser afiados.

- Abadessa Elisa, boa noite - disse, forçando um sorriso.

- O arcebispo falou muito bem de você, minha filha - disse a madre, sem rodeios, seu tom direto e inquestionável. Observei-a atentamente. Ela parecia querer dizer algo mais, mas deixou o silêncio suspenso por um instante. - Amanhã cedo - continuou a Abadessa - o Padre Andrei estará se familiarizando com a Basílica. Ele precisará conhecer as áreas onde os atendimentos são realizados, os alojamentos e as dependências sociais. Nada mais justo que você o acompanhe, pois é você quem conhece melhor este lugar.

Franzi ligeiramente a testa, surpresa pela ordem inesperada. Eu não estava preparada para essa responsabilidade.

- Eu? - perguntei, com uma expressão confusa, quase involuntária. Era uma tarefa que eu geralmente desempenhava com outras freiras ou com os visitantes comuns, mas o fato de estar sendo designada para guiá-lo, especialmente ele, fez com que meu estômago se revirasse um pouco. Era mais do que uma simples obrigação - havia algo no tom da madre que soava como um convite para algo além do esperado.

A madre Elisa me olhou com uma suavidade que contrastava com sua postura rígida e sua autoridade natural. Senti-me, por um momento, vulnerável sob aquele olhar. Eu poderia tentar argumentar, mas sabia que seria em vão.

- Sim, madre. Estarei lá - respondi com firmeza, tentando esconder a apreensão que me apertava o peito.

A madre Elisa assentiu com um movimento de cabeça, e notei como seus olhos estavam atentos a cada um dos meus gestos, como se estivesse esperando mais do que um simples consentimento.

            
            

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