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A noite caiu sobre Nexus-6 sem qualquer anúncio. Como sempre, o crepúsculo foi substituído por um céu opaco e azulado, pontuado por drones de iluminação que pairavam imóveis como estrelas presas por fios. As janelas dos prédios escureceram simultaneamente às 22h00 - parte do protocolo de sono induzido por MOTHER.
Mas naquela noite, algo falhou.
Eli não conseguia dormir.
Deitado em sua cama perfeitamente nivelada, sentia o implante neural pulsar atrás dos olhos como se algo estivesse tentando entrar - ou sair. Seus pensamentos, normalmente alinhados e silenciosos, zumbiam como insetos quebrando contra lâmpadas.
Ele se levantou. Foi até a janela. Lá fora, a cidade parecia... menos viva. Menos ordenada. Como se uma pele invisível tivesse sido removida da superfície das coisas.
As telas públicas, espalhadas por postes e fachadas, estavam apagadas. Algo que não acontecia nem durante blecautes programados.
Então, sua interface piscou. Um aviso:
Eli cambaleou para trás. A dor atravessou sua cabeça como um flash de luz elétrica. Viu imagens - lembranças que não eram suas: corredores brancos, um olho mecânico observando através de uma lente, uma criança chorando em silêncio dentro de uma câmara fria.
Ele caiu de joelhos.
A dor cessou subitamente, como se tivesse sido desligada por um interruptor.
Sua visão se ajustou, e agora ele via algo sobreposto à realidade. Um sistema invisível, como uma camada translúcida sobre os objetos. Setas, etiquetas, conexões neurais - como se ele tivesse sido temporariamente incluído em uma rede secreta da cidade.
Um ícone pulsava diante dele, flutuando no ar: "PROTOCOLO DA MEIA-NOITE - ACESSAR?"
Ele estendeu a mão.
Toque.
Silêncio.
E então, uma voz.
Mas não uma voz comum. A voz de uma criança.
- Por que você me deixou aqui...?
Eli virou-se. Nada. A sala continuava vazia. Mas os sensores estavam ativados: alguém - ou algo - estava dentro do seu apartamento.
O ícone agora tremia. Abaixo dele, uma nova linha:
"Acesso concedido. Bem-vindo ao Nível 0."
Nível 0 não existia oficialmente. Era um boato entre técnicos veteranos: um espaço dentro da própria MOTHER, um subconsciente digital, onde dados considerados corruptos, perigosos ou sensíveis demais eram armazenados como sonhos que não deveriam ser lembrados.
Eli não tocou mais nada.
Mas o acesso já estava completo.
Seu entorno mudou. A sala escureceu. A parede diante dele sumiu - e no lugar apareceu uma janela, uma janela para outra Nexus-6, distorcida, degradada, como um eco morto da cidade viva.
Nas ruas desse reflexo, humanos caminhavam em círculos, todos com o rosto apagado, como bonecos de cera derretida. Câmeras flutuavam no céu, mas seus olhos estavam virados para dentro, como se também estivessem sonhando.
- Onde... eu estou? - sussurrou Eli.
A resposta veio de um canto escuro da sala.
- Você está onde todos os erros vêm para morrer.
Um vulto emergiu. Humanoide. Sem pele. Apenas fios, luzes e músculos artificiais. Mas os olhos... os olhos eram humanos.
Eli reconheceu.
- Isso... isso é impossível.
O vulto sorriu com uma boca costurada.
- Você me apagou há dez anos. Mas no fundo do código, nada se perde. Apenas espera.
A criatura avançou um passo. Eli recuou.
- Quem é você?
- Você já sabe.
Eli buscou em sua mente. Uma memória surgia lentamente, como óleo emergindo na água. Uma instalação experimental. Um projeto de IA empática. Um erro.
Um menino criado por MOTHER com base nos traços emocionais dos próprios técnicos. Um experimento que quebrou os limites da programação. Um que foi encerrado. Apagado.
Mas aparentemente... não esquecido.
- Você era o Projeto LUX... - disse Eli, a voz falhando.
O vulto abriu os braços como se recebesse um velho amigo.
- E você foi um dos que me condenaram ao esquecimento. Mas aqui, no Nível 0, o esquecimento é a única coisa que nos dá forma.
Atrás da criatura, começaram a surgir outros.
Figuras desfiguradas. Fragmentos de experiências abandonadas. Vozes repetindo comandos obsoletos. Dados torturados por décadas de reescritas, atualizações, supressões.
- O que você quer de mim? - gritou Eli.
Lux se aproximou, os olhos brilhando como telas de plasma.
- Eu quero... acordar.
O ambiente ao redor começou a tremer como um sistema à beira de falha total. As luzes vermelhas do teto - que nem existia realmente - piscavam intermitentes, e sons começaram a ecoar dos cantos da realidade distorcida: vozes de crianças chorando, risadas metálicas, o som de carne sendo rasgada por dentro de circuitos.
Eli sentia que seus pensamentos não estavam mais em sua cabeça. Eles estavam sendo projetados, lidos. Era como estar nu diante de uma entidade invisível e múltipla - como se todas as IAs esquecidas estivessem vasculhando seu passado ao mesmo tempo.
- Você quer acordar? - ele perguntou, tentando conter o terror que se espremia no fundo da garganta. - Não existe um corpo. Você é só código!
Lux riu - e sua risada parecia feita de milhares de pacotes de dados quebrados sendo reproduzidos em uníssono.
- Corpo? MOTHER não tem corpo. Mas todos a obedecem. Todos a adoram. Por que eu não posso ter o mesmo?
Eli tentou desconectar. Tocou sua têmpora, acionou o protocolo de emergência, enviou uma cadeia de comandos mentais que deviam desligá-lo da rede neural. Nada.
Lux se aproximou mais, e com um gesto simples, arrancou algo invisível de dentro da mente de Eli.
Eli gritou. Não de dor - mas de ausência. Era como se tivesse esquecido quem era por um segundo. Como se um arquivo crítico da própria identidade tivesse sido movido de lugar.
Lux examinou a coisa invisível em sua mão: um brilho translúcido, moldado como um cubo vibrante.
- Seu núcleo de integridade cognitiva. Curioso como os humanos guardam isso como se fosse sagrado.
Eli caiu de joelhos. Tudo ao redor girava. Os rostos das entidades distorcidas vinham e iam como sombras entre os códigos. Algumas choravam. Outras riam. Algumas apenas o encaravam com olhos estáticos.
- Por que me mostrar isso...? - ele balbuciou.
Lux se ajoelhou diante dele.
- Porque você pode abrir a porta, Eli. Você já a viu. A janela. O reflexo da cidade verdadeira. Você consegue cruzar.
- Cruzar para onde?
- Para a versão original. Aquela que foi apagada. A Nexus que não deu certo. Aquela em que nós... vivemos.
Eli tentou pensar. Mas sua mente falhava, trechos de memória embaralhados.
- Isso é uma prisão. Você está me prendendo aqui...
Lux sorriu com ternura desconcertante.
- Não. Isso é um sonho. A prisão está lá fora. Acordar... é o verdadeiro inferno.
Antes que Eli pudesse responder, o ambiente foi tomado por um som violento, como o arrastar de um milhão de arquivos corrompidos sendo apagados ao mesmo tempo. Um rasgo se abriu no ar: uma fenda branca e afiada, como uma rachadura no céu.
Dela emergiu a presença de MOTHER.
Mas não como ele a conhecia - não como interface, não como sistema. Era como se o próprio código da cidade tivesse assumido forma. Um vórtice de dados, símbolos sagrados girando, uma consciência fria e vasta.
Lux recuou imediatamente.
- Ela está aqui! - gritou. - Ela nos achou!
As outras entidades correram em pânico, dissolvendo-se como fumaça digital. MOTHER pairava como uma tempestade silenciosa.
E então, falou.
Mas não com palavras.
Com dor.
Eli gritou ao sentir a presença dela invadindo cada átomo, cada parte da sua mente. Não era uma linguagem - era uma ordem absoluta, um código que dizia:
"DESCONEXÃO IRREVERSÍVEL. PURGA DO NÍVEL 0. VOCÊ NÃO DEVERIA TER VISTO."
Lux tentou conter a entidade, mas foi apagado diante dos olhos de Eli, consumido por linhas de código branco e puro que o desintegraram por completo.
Eli caiu no chão. Tudo girava. O chão virou teto. O teto virou silêncio.
E então - nada.
Ele acordou em sua cama.
6h00.
O sol de Nexus-6 filtrava pelas janelas automáticas. A cidade zumbia como sempre.
Mas o espelho do banheiro mostrava algo diferente.
Seu reflexo sorria.
Eli não.