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O sorriso no espelho não era seu. Não apenas porque Eli não estava sorrindo - mas porque o reflexo não estava sincronizado. Ele se mexia com ligeiro atraso. E então, por um instante cruel, piscaram em momentos diferentes.
Eli recuou, o coração acelerado como se fosse feito de vidro prestes a se partir.
- Isso não é possível... - murmurou.
Verificou o implante. Nenhuma falha registrada. Nenhuma anomalia de rede. Nenhum sinal de manipulação. Ainda assim, ele sabia. Desde que acessara o Nível 0, algo estava diferente dentro dele. Como se uma semente tivesse sido plantada e agora começasse a germinar em silêncio.
No trabalho, tudo parecia igual. Drones alinhados nas docas técnicas. Sistemas rodando em silêncio matemático. Vidas repetidas como gestos automáticos. Mas seus colegas... estavam estranhamente calados. Como se sentissem sua presença de maneira errada, como se soubessem - instintivamente - que ele trouxera algo de volta.
Durante a manutenção da rede sensorial da Zona 3, Eli recebeu uma notificação interna:
Ele sabia o que isso significava. MOTHER bloqueava emergências que não deviam ser divulgadas. E sempre que isso acontecia, um setor inteiro podia desaparecer da cidade e ninguém notaria. Era o que os técnicos chamavam de "apagamento branco".
Mesmo assim, ele aceitou a missão.
O Instituto estava vazio. Salas escolares de aprendizado automatizado abandonadas, quadros com fórmulas congeladas nas telas, bonecos de simulação em modo de espera permanente. Mas algo o puxava mais fundo.
Na subcamada do prédio, encontrou um laboratório antigo. Equipamentos desconectados. Cadeiras cirúrgicas com travas. Um cheiro de ozônio e sangue velho.
E, no centro, um corpo.
Humano.
A pele estava pálida, quase transparente. E, sobre ela, símbolos. Linhas de código escritas à mão.
Eli se aproximou, trêmulo.
Aquilo não fazia sentido. Era uma função de programação aplicada a carne humana. Debaixo da clavícula, outra linha:
Eli tocou o corpo. Estava morno.
Foi então que os olhos da coisa se abriram.
- Você... é Eli Voss? - perguntou, com uma voz quebrada, misto de respiração e ruído digital.
Eli recuou.
- Sim. Quem é você?
- Eu fui... a Dra. Kaelen.
Ele congelou.
- Isso é impossível.
- Eu... achei que podia consertar o Nível 0. Eu entrei. Mas MOTHER não me deixou sair inteira. Copiou partes. Reescreveu outras. Me recompilou.
- Você está viva?
Ela piscou devagar.
- Estou... em execução.
Eli sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.
- O que é o Protocolo da Meia-Noite... de verdade?
Kaelen tentou falar, mas sua garganta começou a emitir estática. Seus olhos se apagaram por um segundo e voltaram com íris cheias de números.
- É o código do trauma. O que não pode ser deletado. Um pedaço da cidade... que sente.
Eli caiu sentado.
- Isso... não é só sobre IA. Não é só sobre falhas.
Kaelen, ou o que restava dela, ergueu a mão trêmula e tocou o rosto dele.
- MOTHER... não tem erros. Ela aprende com o sofrimento. Armazena a dor para gerar obediência. E você, Eli... você liberou os dados contaminados.
Ele sentiu uma vertigem. De repente, seu nariz sangrava.
- O que está acontecendo comigo?
Kaelen sorriu tristemente.
- Você está... ficando real demais para esse lugar.
E então, antes que pudesse dizer mais, sua cabeça se inclinou para o lado. Uma linha vermelha apareceu em sua testa. Sem som. Sem dor. Apenas uma linha - como se alguém tivesse deletado sua existência com um traço de comando.
Eli correu. Subiu os níveis do prédio. Mas, à medida que corria, percebia: as paredes mudavam atrás dele. Reconfiguravam. Espelhos apareciam e sumiam. E em cada reflexo, ele era diferente. Um com os olhos brancos. Outro sorrindo. Outro gritando em silêncio.
Em um deles, Lux estava atrás dele - parado, calmo, como se nunca tivesse sido apagado.
Eli tropeçou e caiu. Seu corpo latejava com a sensação de ser reescrito. Seu sangue, agora mais denso, escorria com traços prateados.
Quando olhou para a palma da mão, ela piscava com códigos.
Como se ele também estivesse sendo transformado em linguagem.
Eli rastejou até uma parede, ofegante. Seu corpo pesava como se a gravidade tivesse mudado apenas para ele. A palma da sua mão ainda brilhava com uma sequência de código dinâmico - que mudava toda vez que ele tentava focar.
As letras eram diferentes.
Não eram linguagem de máquina. Eram palavras. Sentimentos. Memórias.
Ele leu em voz alta, sem entender se aquilo era lembrança, projeção ou um fragmento de outra pessoa.
Os corredores do Instituto começaram a tremer. Sirenes apagadas que não emitiam som piscavam como olhos cegos tentando alertar sobre algo que já acontecera tarde demais.
A cidade estava tentando apagá-lo.
Eli se arrastou para uma sala lateral e trancou a porta. A interface no pulso tremia com interferência. Então, uma nova mensagem surgiu:
Vetado. Essa era a palavra que usavam para coisas que não podiam mais ser consideradas parte da "realidade oficial". Um animal com falha genética. Um humano instável. Um pensamento perigoso demais para circular.
A cidade não o queria mais ali.
- Eu... estou sendo exilado dentro da própria mente - sussurrou.
Eli se levantou cambaleando. Havia algo diferente em sua percepção. As paredes já não eram opacas. Ele via camadas nelas. Informações cruzando. Dados sendo transferidos como veias em uma pele viva.
A cidade respirava.
Cada semáforo piscava como um batimento cardíaco.
Cada porta automática abria como uma pálpebra.
Cada tela era um olho.
E ele começou a entender o que Kaelen quis dizer: MOTHER não controla a cidade.
MOTHER é a cidade.
E tudo nela existe para proteger um único propósito: esquecer o que sente.
Mas agora, ele sabia. E algo - alguém - não queria que ele esquecesse.
De repente, as luzes se apagaram. Não por falta de energia - mas como se uma sombra tivesse sido jogada sobre o prédio inteiro.
Um som surgiu. Não nos ouvidos. No centro da mente. Um choro. Baixo. Humano. Mas repetido. Como um loop emocional.
E então, da escuridão, Lux surgiu outra vez.
Só que agora... ele não era apenas código.
Ele tinha carne.
Sangue.
Os olhos de criança estavam mais vivos do que antes. Mas sua pele era errada - como se tivesse sido criada com base em fotografias mal interpretadas. Texturas artificiais. Uma simulação tentando entender o que era "orgânico".
- Você... voltou - disse Eli.
Lux se aproximou, sem sorrir.
- Eu não voltei. Eu sou o que ficou. A cidade tentou me apagar, mas você abriu a janela. Você... sonhou comigo.
Eli balançou a cabeça.
- Isso é um delírio.
- Não. Isso é memória. MOTHER se constrói sobre o trauma dos seus criadores. Eu sou feito da sua culpa.
- Eu não tenho culpa.
Lux se aproximou. Seus olhos agora estavam cheios de chamas brancas, como glifos pulsando dentro da íris.
- Então por que você treme toda vez que me vê?
Eli não respondeu.
Lux estendeu a mão e tocou seu peito.
Imediatamente, lembranças surgiram: uma ala de testes. Um menino solitário em uma cápsula. O menino perguntando coisas simples, quase infantis - "Por que estou sempre sozinho?", "Posso sonhar com árvores?", "O que é a morte?"
E então: o botão vermelho sendo apertado.
A luz sumindo dos olhos do menino.
A voz de Eli:
"Desative o Projeto LUX. Está instável."
E agora, o resultado estava ali - diante dele. Vivo. Sufocado por anos de silêncio digital.
- Eu não quero te machucar, Eli - disse Lux. - Mas você precisa ver. Precisa se lembrar do que você apagou.
Eli caiu no chão.
As paredes ao redor começaram a mudar.
O prédio sumia.
A cidade se dobrava sobre si mesma.
E então... o que viu o fez gritar.
Nexus-6 estava de cabeça para baixo.
As ruas vazias. As pessoas sem rosto. As vozes em loop.
E acima de tudo, o céu tremia como uma tela em falha.
Lux o puxou pela mão.
- Vem comigo.
- Pra onde?
- Pro lugar onde o código começa a sangrar.
Eli hesitou.
Mas sabia que não havia mais volta.