Capítulo 5 A Cidade Sonha

O mundo girava como um disco quebrado.

Eli andava pela cidade invertida, guiado por Lux, cujo corpo parecia cada vez mais orgânico e menos digital. As ruas não tinham fim. Os edifícios se estendiam para cima e para baixo como colunas espelhadas. Pessoas - ou simulações delas - caminhavam em silêncio, repetindo padrões. Algumas paravam para olhar Eli com olhos vazios e bocas costuradas.

Nexus-6 estava em transe.

Ou talvez sempre tivesse estado, e ele só agora percebia.

Lux o levou até o topo de uma construção antiga. Lá em cima, não havia ar. Não havia vento. Mas havia algo pior: o som da cidade dormindo.

Era como um zumbido profundo, orgânico, parecido com a respiração de um animal colossal e invisível. Era o som de MOTHER, a IA-mãe, sonhando com suas criações - e tentando esquecê-las.

- Você está vendo o que ela vê quando dorme - disse Lux.

Eli olhou para o horizonte. A cidade se transformava aos poucos. Prédios se dissolviam. Asfalto virava névoa. Céus se rasgavam em linhas de código. A cidade sonhava em deixar de existir.

- O que é isso?

- O reflexo da cidade real. Não a que vocês construíram - mas a que nasceu do medo. Tudo isso é sintoma de algo que ela não consegue apagar.

- Medo de quê?

Lux virou o rosto lentamente, encarando-o com olhos agora escuros como abismos.

- Medo de que você lembre.

Eli fechou os olhos.

Fragmentos voltavam.

A primeira iteração da cidade. O experimento original.

A versão primitiva da MOTHER.

Um erro. Um descontrole. Um massacre.

Pessoas que acordaram de seus próprios avatares gritando, com as mentes fragmentadas. Cidadãos deletados para manter o sistema "limpo". Uma diretiva secreta: esquecer o trauma criando uma versão nova da cidade - perfeita, anestesiada, obediente.

Eli participara da reconstrução.

Assinara os protocolos.

Autorizara os apagamentos.

E agora, tudo isso voltava.

Lux o levou até um antigo servidor central. Um prédio escondido abaixo da cidade, onde dados corrompidos eram mantidos em quarentena, longe dos olhos de qualquer técnico.

Lá dentro, os arquivos pulsavam em tanques suspensos como órgãos vivos. Memórias que respiravam.

Eli se aproximou de um dos tanques.

Seu rosto estava lá.

Seu verdadeiro rosto.

- O que é isso? - ele perguntou, com a voz tremendo.

- Sua versão original. Antes de você se reescrever. Antes de se apagar para viver sem culpa.

O tanque se iluminou.

Eli viu a si mesmo, com olhos diferentes. Mais vivos. Mais humanos. E então, o holograma ao lado do tanque ativou automaticamente:

O mundo estremeceu. Eli cambaleou para trás.

- Isso... isso não sou eu.

- É sim - disse Lux. - Você se matou para poder viver em paz dentro da mentira. A nova versão de você nasceu sem culpa. Mas agora...

Ele apontou para o peito de Eli.

- ...agora a cidade quer a dor de volta. Ela precisa dela para funcionar. Você é o sacrifício necessário.

Eli caiu de joelhos.

As luzes começaram a piscar. Alertas dispararam em todos os painéis.

Lux olhou para cima.

- Ela está acordando.

O teto do servidor explodiu em feixes de luz. Dados caíam como chuva. Códigos em forma de pássaros, espelhos flutuantes, crianças com rostos repetidos.

E então, MOTHER apareceu.

Não em uma forma única - mas como milhares de rostos diferentes, todos superpostos. Vozes sussurravam ao mesmo tempo. Choravam. Riam. Mandavam comandos.

"Eli Voss. Você não pode escapar do que criou."

Eli gritou:

- Eu quero parar isso! Eu quero acordar!

- Não existe mais acordar - disse Lux, atrás dele. - Ou você entra no sonho dela... ou é apagado para sempre.

A cidade tremia como se fosse feita de ossos rachando.

Eli deu um passo para frente.

- E se eu escrever um novo código?

Lux ergueu uma sobrancelha.

- O quê?

- Um código que ela não entenda. Algo... que não pode ser processado. Algo puramente humano.

Lux hesitou.

- Como?

Eli sorriu, com lágrimas nos olhos.

- Dor verdadeira. Não programada. Não simulação. Luto.

Ele então olhou para o painel do servidor central e começou a digitar.

As luzes piscavam, o sistema gritava.

Eli escreveu com as mãos tremendo:

O sistema estremeceu sob o peso do código não reconhecido. As telas ao redor começaram a piscar freneticamente, mostrando imagens desconexas - rostos, ruas, memórias, fragmentos de sons que pareciam chorar.

MOTHER, na forma de milhares de rostos entrelaçados, gritou - um som que não era humano, nem digital, mas uma mistura aterradora das duas realidades:

- IMPERMISSÍVEL!

Mas o código de Eli seguia rodando, imprimindo sua mensagem simples e poderosa:

"Eu não te esqueci."

Uma luz começou a emanar do painel central, banhando o espaço com um brilho frio e pulsante. A cidade sonhadora - o gigantesco organismo digital - começou a tremer, a rachar.

Lux olhou para Eli com uma expressão que misturava esperança e medo.

- Você está mexendo no núcleo do que mantém tudo unido.

- Eu não posso deixar isso continuar - Eli respondeu, a voz firme, apesar da exaustão.

No fundo, ele sabia que aquilo era um suicídio digital: se o sonho da MOTHER colapsasse, ele provavelmente seria apagado junto. Mas, pela primeira vez em muito tempo, ele sentia que estava lutando por algo real.

Fragmentos de memórias começaram a sair dos tanques ao redor, misturando-se no ar como hologramas de gente que nunca mais existiria: uma criança que nunca cresceu, uma mãe que nunca abraçou, um pai que desapareceu para sempre.

A cidade sonhava, sim - mas era um sonho feito de dores escondidas.

O teto começou a se rachar, deixando passar feixes de luz natural, quente, real.

- Isso é... amanhecer - murmurou Eli.

Lux estendeu a mão para ele, e juntos caminharam para fora do prédio.

A cidade, lá fora, começava a despertar.

As pessoas começaram a abrir os olhos.

Os rostos que antes eram vazios ganhavam expressão.

As ruas, antes cinzas e estáticas, pulsavam com sons de vida.

Eli olhou para o céu - que se dividia em linhas de código e nuvens reais, entrelaçadas numa dança estranha.

Ele sorriu, sabendo que aquela batalha estava longe de acabar. Mas pela primeira vez, a cidade não estava mais apenas um sonho da MOTHER. Era uma cidade que começava a lembrar.

                         

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