Capítulo 2 O silêncio que ficou

A noite caía devagar sobre a cidade, tingindo os prédios com tons de azul e violeta. O reflexo das luzes começava a dançar nas janelas de vidro da cobertura onde Leonardo morava. Ele estava parado na sacada, mãos no parapeito, olhando o horizonte com um copo de vinho pela metade.

Clara sentou-se no sofá da sala, em silêncio. Estavam juntos há algumas semanas desde que se reencontraram, mas havia uma conversa que ainda não tinham tido de verdade. E ela sabia que, cedo ou tarde, aquele silêncio precisaria ser quebrado.

- Leo - ela disse, suavemente. - Posso te perguntar uma coisa?

Ele virou o rosto devagar. O olhar cansado, mas calmo.

- Claro.

- Por que você sumiu daquele jeito?

Ele não respondeu de imediato. Voltou a encarar a cidade lá embaixo, como se procurasse a resposta nas luzes.

- Foi o funeral do seu pai? - continuou ela. - Ou foi... tudo?

Ele soltou um suspiro longo e colocou o copo sobre a mureta. Entrou devagar e sentou-se ao lado dela no sofá. Seus ombros pareciam carregar anos de peso.

- Eu queria ter ido até você - começou, olhando para as próprias mãos. - Nos primeiros dias... eu realmente queria.

Clara ficou em silêncio, esperando.

- Quando meu pai morreu, tudo desabou de uma vez só. Ele era o pilar de tudo, Clara. Não só da empresa, mas da nossa família... da minha vida. Eu achava que ele era indestrutível. Um dia ele estava ali, firme como sempre, e no outro... o telefone tocou.

Leonardo fechou os olhos por um momento, lutando contra a emoção.

- Foi um ataque fulminante. Eu estava em casa, revisando um trabalho da escola. Ele tinha ido pra uma reunião em São Paulo. Só soube horas depois. Lembro que minha mãe entrou no meu quarto com o rosto pálido... e depois só lembro do silêncio. Do vazio.

Clara o observava atentamente, os olhos marejados.

- Eu tentei ir ao hospital - continuou ele. - Mas ele já tinha ido. Eu não consegui me despedir. Não consegui dizer tudo que queria. E no dia seguinte... a realidade bateu. Advogados, conselheiros, reuniões. Clara, eu não tive nem tempo pra chorar. Me enfiaram numa sala com vinte diretores e disseram que a empresa precisava de mim. Que o nome da minha família estava em jogo.

- Mas você era só um garoto... - disse ela, baixinho.

- Sim. Um garoto que não pôde ser garoto. - Ele riu sem humor. - Eu deixei a escola na semana seguinte. Comecei a estudar com mentores privados, a aprender o que era EBITDA, fluxo de caixa, passivo trabalhista. Enquanto os outros da nossa idade estavam escolhendo faculdade, eu estava assinando contratos. Era como viver sob um holofote constante. E quanto mais eu me enterrava nesse mundo... mais distante você ficava.

- Mas eu tentei te alcançar, Leo. Eu mandei mensagens. Fui até sua casa. Escrevi cartas.

- Eu sei. Eu li todas. - Ele finalmente a olhou nos olhos. - Mas eu não tinha forças. Cada vez que lia uma, sentia como se estivesse traindo quem eu era antes. Como se ainda existisse um Leonardo que ria com você embaixo do carvalho na praça. Mas aquele garoto... estava soterrado.

- Por que não me deixou te ajudar?

- Porque eu tinha medo - confessou ele. - Medo de que, se você visse o que eu estava virando, não reconhecesse mais em mim o seu melhor amigo.

Ela colocou a mão sobre a dele.

- Eu teria reconhecido. Eu ainda reconheço.

Leonardo respirou fundo, apertando levemente os dedos dela.

- Você era minha luz, Clara. E quando meu mundo desabou, a única maneira que encontrei de continuar foi desligar tudo. Até você. Achei que era mais fácil esquecer do que lidar com a dor de te perder também.

- Mas você não me perdeu - disse ela, com firmeza. - Eu só fiquei esperando do lado de fora, enquanto você trancava todas as portas.

Ele abaixou a cabeça, a voz falhando.

- Eu sinto tanto... Por tudo. Por ter sumido. Por não ter te procurado. Por ter deixado você carregando a ausência como se fosse culpa sua.

- Não era - respondeu Clara. - Mas doeu. Muito.

O silêncio se instalou por um instante, não como barreira, mas como espaço onde as palavras haviam finalmente sido ditas.

- Você sabe... - começou ela. - Eu também perdi alguém. Um ano depois do seu pai. Minha mãe. Câncer. Eu queria tanto te ligar, te contar, pedir um abraço. Mas você já não estava mais.

Leonardo virou-se para ela, atônito.

- Eu... eu não sabia. Clara, me perdoa.

Ela assentiu, com os olhos úmidos.

- A vida levou a gente por caminhos muito diferentes. Mas ainda assim... você tá aqui. E eu tô aqui.

- Eu quero fazer diferente agora - disse ele. - Quero te mostrar quem eu sou hoje, sem máscaras. Quero recuperar cada pedaço que deixamos pelo caminho. Se você ainda quiser.

- Leo... eu nunca deixei de querer.

Ele sorriu, e os olhos dele, pela primeira vez em muito tempo, se encheram de lágrimas. Não lágrimas de tristeza, mas de alívio. Como se um nó antigo finalmente tivesse se desfeito.

- E se a gente... recomeçar? Não como antes. Mas como somos agora.

- Recomeçar não é esquecer o que passou. É saber onde erramos... e escolher fazer diferente.

Ela se aproximou e o abraçou, devagar, como quem reconstrói algo delicado.

- Eu senti tanto a sua falta, Leo - sussurrou ela contra o ombro dele. - Cada aniversário. Cada Natal. Eu me perguntava como você estava. Se ainda sorria do mesmo jeito. Se ainda se lembrava da gente.

- Eu me lembrava - disse ele. - Toda vez que o peso era demais, eu pensava na Clara de olhos grandes e riso fácil, que me fazia esquecer de tudo com um olhar. E, de certa forma, era isso que me mantinha de pé.

Na sacada, o vento continuava soprando sobre a cidade. Mas ali, naquele sofá, dois mundos que pareciam perdidos haviam finalmente se encontrado de novo.

            
            

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