Capítulo 3 Um passo de cada vez

Na manhã seguinte, Clara acordou antes do sol nascer. O céu ainda estava tingido de cinza quando ela caminhou pela cobertura silenciosa. Passou pela cozinha, fez café e se sentou perto da janela da sala, observando a cidade acordar.

Ela não sabia exatamente o que pensar. As palavras ditas na noite anterior ainda ressoavam dentro dela. A dor, a confissão, o reencontro. Era como se, depois de anos de inverno, o gelo tivesse começado a derreter.

Leonardo apareceu pouco depois, descalço, com o cabelo desalinhado e uma expressão de quem não dormira direito.

- Tem café? - perguntou, com um sorriso tímido.

- Sempre - respondeu ela, empurrando a caneca em sua direção.

Eles beberam em silêncio por alguns minutos, o som da cidade crescendo lentamente ao fundo.

- Sabe - disse ele, enfim -, ontem foi a primeira vez em anos que consegui falar do meu pai sem me sentir sufocado.

Clara o olhou com carinho.

- Você guardou tudo por tanto tempo, Leo. Era inevitável que em algum momento isso virasse pedra no peito.

- Virou. - Ele deu um gole. - E você foi a única que conseguiu quebrar essa pedra. Mesmo depois de tanto tempo.

Ela sorriu de leve, mas logo desviou o olhar.

- E agora? - perguntou. - O que a gente faz com tudo isso?

Ele hesitou.

- Eu queria te convidar para passar o fim de semana comigo. Na casa do lago. Aquela que meu pai comprou quando a gente era criança. Lembra?

- A que a gente desenhou os nomes na árvore?

- Essa mesma. Ainda está lá. Nunca levei ninguém desde que ele morreu. Mas... acho que agora posso voltar.

Clara assentiu, surpresa.

- Seria bom... voltar a um lugar onde as memórias não doem tanto.

- Eu queria dividir isso com você.

O trajeto até a casa no lago foi feito em silêncio, mas um silêncio confortável. Clara dirigia, e Leonardo parecia diferente - mais calmo, mais presente. O peso dos anos parecia ter diminuído desde que as palavras, finalmente, tinham sido ditas.

- Você realmente não vem aqui há anos? - ela perguntou, enquanto seguiam por uma estrada de terra ladeada por árvores altas.

- Não. Toda vez que pensei em vir, era como se tivesse um muro invisível. E quanto mais tempo passava, mais alto ele parecia. Mas agora... com você, o caminho parece mais curto.

Ela sorriu, mas não disse nada. Aquilo era mais do que um passeio - era um rito de passagem.

Quando chegaram, Clara parou o carro em frente à antiga cabana de madeira. A casa era grande, mas simples, cercada por pinheiros altos e com um pequeno cais de madeira que avançava pelo lago cristalino.

- Uau - murmurou ela. - Parece que o tempo parou aqui.

- Foi o que eu quis. Nunca mudei nada.

Leonardo desceu do carro e respirou fundo o ar fresco. Ele parecia um menino outra vez, olhando para a casa como se visse um velho amigo.

- Vem - disse ele, estendendo a mão.

Ela a segurou, e caminharam juntos até a varanda. Lá dentro, tudo estava arrumado, limpo, como se alguém tivesse passado lá na véspera - mas Clara sabia que era o cuidado silencioso que Leonardo ainda tinha com o passado.

Passaram a tarde explorando os velhos cômodos. Clara encontrou uma caixa de jogos que haviam usado quando crianças, e Leonardo riu ao ver um antigo tabuleiro riscado com rabiscos deles.

- Lembra como você sempre trapaceava?

- Eu? - ela fingiu indignação. - Você é quem mexia as peças quando eu não olhava!

Riram como nos velhos tempos. Era estranho e reconfortante ao mesmo tempo. O riso curava o que o silêncio havia machucado.

Mais tarde, à beira do lago, sentaram-se no deque de madeira, com os pés tocando a água.

- Eu pensei muito sobre o que você disse ontem - comentou Clara, olhando para o horizonte. - Sobre medo. Sobre não querer ser visto de uma forma que não reconhecia.

- E?

- Eu entendo. Mais do que imaginei. Depois que minha mãe morreu, eu também me fechei. Não queria que ninguém visse o quanto eu estava quebrada. E quanto mais tempo passava, mais difícil ficava admitir que precisava de alguém.

- A gente se perdeu tentando sobreviver, né?

- Exatamente.

O silêncio se instalou por alguns minutos, enquanto o som das pequenas ondas preenchia o ar.

- Clara - começou ele, com a voz baixa -, você acha que ainda existe espaço pra gente na vida um do outro?

Ela demorou a responder. Estava olhando o reflexo da água e as próprias memórias.

- Eu não sei o que vai ser daqui pra frente, Leo. Mas o que eu sei... é que nunca parei de querer que você fizesse parte da minha vida.

- Nem eu - disse ele. - Nem por um segundo.

Naquela noite, jantaram juntos na varanda. Leonardo cozinhou - um risoto que lembrava o que costumavam pedir no restaurante favorito de ambos - e Clara riu do jeito desajeitado dele na cozinha.

- Você sempre queimava o alho - provocou.

- Melhor que você, que achava que ketchup combinava com lasanha!

Depois do jantar, Clara subiu para o antigo quarto de hóspedes, mas ao passar pela porta, viu que Leonardo estava na sala, sentado no chão, olhando um álbum de fotos antigo.

Ela se aproximou e se sentou ao lado dele.

- Nossa - disse ela, tocando a capa gasta. - Eu lembro desse álbum. Seu pai tirava foto de tudo.

- Ele dizia que as memórias são a única coisa que não se perde quando tudo o resto desmorona.

Folhearam juntos as páginas. Crianças com joelhos ralados, tardes no lago, aniversários simples com bolo de chocolate. Em uma das fotos, Clara e Leonardo estavam abraçados debaixo de chuva, sorrindo como se o mundo inteiro coubesse naquele momento.

- Éramos felizes - disse ela, tocando a imagem.

- E ainda podemos ser.

Ela virou o rosto, olhando para ele. A tensão estava ali, suave, mas presente. Um desejo contido, uma pergunta muda entre os dois.

- Leo...

- Me diz se eu estiver indo rápido demais - sussurrou ele, se aproximando.

Ela não respondeu com palavras. Apenas tocou o rosto dele com a ponta dos dedos, devagar, como quem redescobre um lar. E então, finalmente, o beijo aconteceu. Lento, carregado de anos não ditos. Não era paixão juvenil - era reencontro. Era perdão. Era promessa.

Depois do beijo, ela encostou a cabeça no ombro dele.

- Eu não sei o que tudo isso significa ainda - murmurou. - Mas eu sei que faz sentido.

- E eu prometo não ir embora de novo - disse ele. - Mesmo que o mundo desabe.

Na manhã seguinte, Clara acordou com o cheiro de café e o som de música baixa vindo da cozinha. Encontrou Leonardo preparando o café da manhã, mais à vontade do que nunca.

- Bom dia - disse ele, sorrindo ao vê-la.

- Você acordou cedo?

- Não dormi muito. Fiquei pensando em ontem. Em nós.

Ela se aproximou e encostou o rosto no peito dele, ouvindo o som do coração.

- E pensou o quê?

- Que quero mais disso. Mais fins de semana. Mais manhãs. Mesmo que seja difícil, mesmo que a vida me puxe pra todos os lados.

Ela se afastou só o suficiente para olhar nos olhos dele.

- Leo... você tem certeza?

- Absoluta. Eu não posso mudar o que vivi, o tempo que deixei passar. Mas posso fazer diferente agora.

Clara sorriu, mas havia dúvida em seu olhar.

- Você está pronto pra me incluir de verdade na sua vida? Com tudo o que isso implica?

- Sim. E se eu tropeçar, você me puxa de volta. Que nem fazia antes.

Ela assentiu. O coração batia mais calmo agora.

- Então vamos tentar. Com calma. Um passo por vez.

- Um passo de cada vez - repetiu ele, segurando sua mão.

Ali, na casa do lago onde tudo começou, dois corações marcados pelo tempo se encontraram outra vez - não como eram, mas como poderiam ser.

            
            

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