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Na manhã seguinte, Clara acordou antes do sol nascer. O céu ainda estava tingido de cinza quando ela caminhou pela cobertura silenciosa. Passou pela cozinha, fez café e se sentou perto da janela da sala, observando a cidade acordar.
Ela não sabia exatamente o que pensar. As palavras ditas na noite anterior ainda ressoavam dentro dela. A dor, a confissão, o reencontro. Era como se, depois de anos de inverno, o gelo tivesse começado a derreter.
Leonardo apareceu pouco depois, descalço, com o cabelo desalinhado e uma expressão de quem não dormira direito.
- Tem café? - perguntou, com um sorriso tímido.
- Sempre - respondeu ela, empurrando a caneca em sua direção.
Eles beberam em silêncio por alguns minutos, o som da cidade crescendo lentamente ao fundo.
- Sabe - disse ele, enfim -, ontem foi a primeira vez em anos que consegui falar do meu pai sem me sentir sufocado.
Clara o olhou com carinho.
- Você guardou tudo por tanto tempo, Leo. Era inevitável que em algum momento isso virasse pedra no peito.
- Virou. - Ele deu um gole. - E você foi a única que conseguiu quebrar essa pedra. Mesmo depois de tanto tempo.
Ela sorriu de leve, mas logo desviou o olhar.
- E agora? - perguntou. - O que a gente faz com tudo isso?
Ele hesitou.
- Eu queria te convidar para passar o fim de semana comigo. Na casa do lago. Aquela que meu pai comprou quando a gente era criança. Lembra?
- A que a gente desenhou os nomes na árvore?
- Essa mesma. Ainda está lá. Nunca levei ninguém desde que ele morreu. Mas... acho que agora posso voltar.
Clara assentiu, surpresa.
- Seria bom... voltar a um lugar onde as memórias não doem tanto.
- Eu queria dividir isso com você.
O trajeto até a casa no lago foi feito em silêncio, mas um silêncio confortável. Clara dirigia, e Leonardo parecia diferente - mais calmo, mais presente. O peso dos anos parecia ter diminuído desde que as palavras, finalmente, tinham sido ditas.
- Você realmente não vem aqui há anos? - ela perguntou, enquanto seguiam por uma estrada de terra ladeada por árvores altas.
- Não. Toda vez que pensei em vir, era como se tivesse um muro invisível. E quanto mais tempo passava, mais alto ele parecia. Mas agora... com você, o caminho parece mais curto.
Ela sorriu, mas não disse nada. Aquilo era mais do que um passeio - era um rito de passagem.
Quando chegaram, Clara parou o carro em frente à antiga cabana de madeira. A casa era grande, mas simples, cercada por pinheiros altos e com um pequeno cais de madeira que avançava pelo lago cristalino.
- Uau - murmurou ela. - Parece que o tempo parou aqui.
- Foi o que eu quis. Nunca mudei nada.
Leonardo desceu do carro e respirou fundo o ar fresco. Ele parecia um menino outra vez, olhando para a casa como se visse um velho amigo.
- Vem - disse ele, estendendo a mão.
Ela a segurou, e caminharam juntos até a varanda. Lá dentro, tudo estava arrumado, limpo, como se alguém tivesse passado lá na véspera - mas Clara sabia que era o cuidado silencioso que Leonardo ainda tinha com o passado.
Passaram a tarde explorando os velhos cômodos. Clara encontrou uma caixa de jogos que haviam usado quando crianças, e Leonardo riu ao ver um antigo tabuleiro riscado com rabiscos deles.
- Lembra como você sempre trapaceava?
- Eu? - ela fingiu indignação. - Você é quem mexia as peças quando eu não olhava!
Riram como nos velhos tempos. Era estranho e reconfortante ao mesmo tempo. O riso curava o que o silêncio havia machucado.
Mais tarde, à beira do lago, sentaram-se no deque de madeira, com os pés tocando a água.
- Eu pensei muito sobre o que você disse ontem - comentou Clara, olhando para o horizonte. - Sobre medo. Sobre não querer ser visto de uma forma que não reconhecia.
- E?
- Eu entendo. Mais do que imaginei. Depois que minha mãe morreu, eu também me fechei. Não queria que ninguém visse o quanto eu estava quebrada. E quanto mais tempo passava, mais difícil ficava admitir que precisava de alguém.
- A gente se perdeu tentando sobreviver, né?
- Exatamente.
O silêncio se instalou por alguns minutos, enquanto o som das pequenas ondas preenchia o ar.
- Clara - começou ele, com a voz baixa -, você acha que ainda existe espaço pra gente na vida um do outro?
Ela demorou a responder. Estava olhando o reflexo da água e as próprias memórias.
- Eu não sei o que vai ser daqui pra frente, Leo. Mas o que eu sei... é que nunca parei de querer que você fizesse parte da minha vida.
- Nem eu - disse ele. - Nem por um segundo.
Naquela noite, jantaram juntos na varanda. Leonardo cozinhou - um risoto que lembrava o que costumavam pedir no restaurante favorito de ambos - e Clara riu do jeito desajeitado dele na cozinha.
- Você sempre queimava o alho - provocou.
- Melhor que você, que achava que ketchup combinava com lasanha!
Depois do jantar, Clara subiu para o antigo quarto de hóspedes, mas ao passar pela porta, viu que Leonardo estava na sala, sentado no chão, olhando um álbum de fotos antigo.
Ela se aproximou e se sentou ao lado dele.
- Nossa - disse ela, tocando a capa gasta. - Eu lembro desse álbum. Seu pai tirava foto de tudo.
- Ele dizia que as memórias são a única coisa que não se perde quando tudo o resto desmorona.
Folhearam juntos as páginas. Crianças com joelhos ralados, tardes no lago, aniversários simples com bolo de chocolate. Em uma das fotos, Clara e Leonardo estavam abraçados debaixo de chuva, sorrindo como se o mundo inteiro coubesse naquele momento.
- Éramos felizes - disse ela, tocando a imagem.
- E ainda podemos ser.
Ela virou o rosto, olhando para ele. A tensão estava ali, suave, mas presente. Um desejo contido, uma pergunta muda entre os dois.
- Leo...
- Me diz se eu estiver indo rápido demais - sussurrou ele, se aproximando.
Ela não respondeu com palavras. Apenas tocou o rosto dele com a ponta dos dedos, devagar, como quem redescobre um lar. E então, finalmente, o beijo aconteceu. Lento, carregado de anos não ditos. Não era paixão juvenil - era reencontro. Era perdão. Era promessa.
Depois do beijo, ela encostou a cabeça no ombro dele.
- Eu não sei o que tudo isso significa ainda - murmurou. - Mas eu sei que faz sentido.
- E eu prometo não ir embora de novo - disse ele. - Mesmo que o mundo desabe.
Na manhã seguinte, Clara acordou com o cheiro de café e o som de música baixa vindo da cozinha. Encontrou Leonardo preparando o café da manhã, mais à vontade do que nunca.
- Bom dia - disse ele, sorrindo ao vê-la.
- Você acordou cedo?
- Não dormi muito. Fiquei pensando em ontem. Em nós.
Ela se aproximou e encostou o rosto no peito dele, ouvindo o som do coração.
- E pensou o quê?
- Que quero mais disso. Mais fins de semana. Mais manhãs. Mesmo que seja difícil, mesmo que a vida me puxe pra todos os lados.
Ela se afastou só o suficiente para olhar nos olhos dele.
- Leo... você tem certeza?
- Absoluta. Eu não posso mudar o que vivi, o tempo que deixei passar. Mas posso fazer diferente agora.
Clara sorriu, mas havia dúvida em seu olhar.
- Você está pronto pra me incluir de verdade na sua vida? Com tudo o que isso implica?
- Sim. E se eu tropeçar, você me puxa de volta. Que nem fazia antes.
Ela assentiu. O coração batia mais calmo agora.
- Então vamos tentar. Com calma. Um passo por vez.
- Um passo de cada vez - repetiu ele, segurando sua mão.
Ali, na casa do lago onde tudo começou, dois corações marcados pelo tempo se encontraram outra vez - não como eram, mas como poderiam ser.