Era o tipo de sorriso que tentava esconder o cansaço, o medo e a fé de quem já perdeu mais do que devia - mas ainda assim insiste em recomeçar.
Léo não precisou perguntar quem era. Sabia de tudo que acontecia nos arredores. A venda da casa vizinha, a chegada de uma mãe solteira com uma filha pequena. A cidade de São João do Triunfo podia ser pacata, mas as notícias corriam rápido como fogo em campo seco.
Com um último olhar para a nova vizinha, Léo voltou ao trabalho. A plantadeira engatada ao trator fazia sua dança precisa sobre o solo úmido. Ele acreditava que a terra era como gente: precisava de silêncio, tempo e respeito. Não havia espaço para distrações.
Mas no fim daquele dia, distração era o que mais rondava seus pensamentos.
Laura limpou a testa com o dorso da mão suja de poeira. A casa que comprara com quase todas as economias que tinha era velha, mas estava de pé. O telhado precisava de alguns reparos, e acerca do quintal estava torta. Ainda assim, era o mais perto de um lar que ela e a filha, Liz, tinham tido em anos.
- Mamãe, tem vaca ali! - gritou a menina, apontando para a cerca de arame farpado que separava a propriedade da vizinha, onde pastavam algumas novilhas.
Laura sorriu.
- E vai ter galinha também, meu amor. Logo a gente ajeita tudo.
A pequena Liz correu pelo quintal com os braços abertos, como se voasse, rindo com liberdade. A mãe fechou os olhos por um momento. Não sabia se aquela terra daria conta dos seus planos. Só sabia que precisava fazer dar certo.
À noite, enquanto empilhava caixas na sala, ouviu uma batida seca na porta. Ao abrir, deu de cara com o homem mais imponente que já vira de perto.
- Boa noite. - A voz era grave, o sotaque carregado do interior. - Sou Léo Almeida. Cuido da fazenda ao lado.
Laura puxou um sorriso tímido, limpando as mãos na calça jeans.
- Laura Costa. Acabei de chegar. Obrigada por vir.
Ele assentiu, sem muito entusiasmo.
- Se precisar de ferramenta ou água do poço até ligar tudo aqui, pode pedir. A caixa d'água de vocês parece estar com vazamento. Vi do campo.
- Nossa, obrigada por avisar. Amanhã mesmo vejo isso.
Léo olhou em volta. A filha dela brincava com um boneco improvisado feito de espiga de milho. Seus olhos suavizaram por um instante.
- Quantos anos ela tem?
- Sete. Liz.
- Tá na idade boa... - murmurou. - Se quiser, posso trazer umas estacas. A cerca aí não segura nem cachorro magro.
Laura riu, aliviada.
- Aceito, sim. Vai me salvar.
- Então tá. Boa noite. - Ele virou as costas, sem cerimônia.
Laura ficou na soleira por alguns segundos, observando o homem desaparecer na escuridão. Havia algo nele... firmeza, rigidez, e uma espécie de tristeza antiga guardada nos ombros largos. Ela reconhecia aquilo. Também carregava seu luto particular.
Os dias seguintes passaram com o ritmo da roça. Léo trabalhava do amanhecer ao entardecer. A nova vizinha tentava aos poucos reorganizar a vida, plantar, limpar, ensinar a filha, e cuidar de uma pequena horta.
Ele observava. De longe. Sempre de longe.
Até o dia em que ela surgiu, suada, com o cabelo preso de qualquer jeito e a enxada na mão, tentando abrir uma vala de irrigação.
- Isso aí vai acabar com tua coluna - ele disse, encostado na cerca.
- Melhor do que acabar com a conta bancária pagando encanador.
Léo soltou um sorriso raro.
- Deixa que eu te ajudo.
- Não precisa - disse ela, teimosa.
- Não estou perguntando.
Ela encarou o homem por um instante. Nos olhos dele havia determinação, mas nenhuma arrogância. Era o tipo de homem que ajudava porque sabia que trabalho na terra não escolhe gênero, mas também não se faz sozinho.
Laura recuou, enfim.
- Então tá. Mas só se deixar eu fazer o café depois.
- Café de roça ou café aguado de cidade?
- Desconfia do meu café, seu Léo?
- Desconfio de tudo - respondeu, com o canto da boca repuxado.
O café virou rotina. A ajuda também.
Léo aparecia com estacas, sementes, conselhos. Nunca entrava na casa. Sempre do lado de fora, chapéu na mão, olhos atentos à lavoura - e aos olhos castanhos dela.
Laura, por sua vez, passou a observar aquele homem com mais curiosidade. O modo como ele calava, como amarrava os próprios sentimentos como se fossem laços apertados de bota. Percebeu que ele evitava falar do passado, mas conhecia cada palmo daquela terra como se ela respirasse junto com ele.
Certa tarde, após mais um dia de enxada e suor, ela se atreveu a perguntar:
- Léo... por que ficou aqui? Nunca pensou em ir embora, tentar a vida em outro lugar?
Ele demorou. O silêncio cresceu como capim alto antes da foice.
Depois respondeu, seco:
- Porque aqui é onde tá enterrado quem eu sou.
Laura entendeu. E por um instante, ficou sem palavras.
Mas algo dentro dela floresceu naquele silêncio.
Algo que tinha cheiro de terra molhada.
E gosto de recomeço.