Capítulo 3 De Corpo. De Alma. De Sangue.

P.O.V. ALINA

Após algumas horas de investigação no território Sangue de Prata, decidi que era hora de retornar para casa. Afinal, o dia seguinte exigiria minha plena atenção - e eu ainda não havia descansado nem por um instante.

***

P.O.V. LUCIEN

– Alfa! – Chamou meu Gamma com a voz tensa.

– Sim. – Respondi sem qualquer entusiasmo, os olhos ainda fixos na janela enevoada do salão.

– Aquela garota humana... ela esteve novamente em nosso território. – Acrescentou, deixando escapar o desdém em sua voz, como se falar sobre ela o incomodasse mais do que devia.

Lucien virou lentamente o rosto em minha direção. Seus olhos se estreitaram.

– Alina? – Indagou, sério, quase num sussurro.

– Sim. – Cuspiu Thomas, cruzando os braços.

Num movimento tão rápido que Thomas mal pôde reagir, Lucien avançou. Em um instante, sua mão forte agarrou o pescoço de Thomas e o prendeu brutalmente contra a parede de pedra, fazendo um baque surdo ecoar pelo salão.

– Quem você pensa que é para falar dela com esse desrespeito? – Rosnei, minha voz grave e cortante como lâmina.

– A-Alfa... sou eu... seu Gamma... – conseguiu murmurar Thomas, mesmo com a mão do líder comprimindo sua traqueia.

Os olhos de Lucien ardiam como brasas acesas na noite. Lentamente, ele afrouxou o aperto. Thomas caiu de joelhos, ofegante, massageando o pescoço.

– Lucien, o que deu em você? Somos amigos há anos... – disse ele, ainda recuperando o fôlego. – Por que ficou tão... furioso?

Lucien afastou-se, os ombros tensos. Sua voz saiu baixa, carregada de um pesar contido.

– Desculpe... Tem sido difícil conter minha ira ultimamente. E eu não gostei da forma como você falou sobre Alina. Ela está sob minha proteção. – Afirmei.

Thomas se ergueu com esforço, ajeitando o colarinho.

– Isso foi há muitos anos, Lucien. Ela não precisa mais da sua proteção. Aquela humana tem uma família que a ama, e, mesmo sendo o que é, tornou-se mais forte que muitas das nossas guerreiras. - Ele fez uma pausa, observando o amigo com um misto de exaustão e frustração. – Você não pode continuar mantendo uma promessa que já se encerrou.

As palavras de Thomas romperam a represa das memórias. Como uma enxurrada, elas invadiram a mente de Lucien, com a força de uma maldição ancestral.

Ele tinha apenas 12 anos na primeira vez que se transformou. Jovem demais para a primeira caçada. Lembrava-se dos gritos, longínquos e lancinantes, vindos do território do clã Sangue da Aurora. Pensara que era um delírio. - Ninguém atacaria um clã tão poderoso.

Mas não era um delírio.

As histórias sobre o clã Sangue da Aurora corriam como lendas: descendentes de uma estrela caída durante um eclipse de lua de sangue; filhos de uma Luna com poderes tão raros quanto temidos. Diziam que seus herdeiros possuíam dons únicos - olhos vermelhos como rubis, visões do futuro, comandos vocais que dominavam lobisomens, a capacidade de acalmar até a fúria de uma transformação.

Mesmo com tamanho poder, eles eram um povo pacífico. Respeitados. Honrados. O pai de Lucien sempre os reverenciou.

Mas naquela noite, o cheiro de sangue dominava o ar. Gritos. Lamentos. Cinzas.

Lucien, ainda recém-transformado, desfez sua forma lupina ao se aproximar dos escombros do que restava da alcatéia. Ao entrar na casa da matilha, viu uma cena que jamais esqueceria: a Luna do clã jazia ferida ao lado do berço, coberta de sangue, ofegando. Havia três corpos estendidos sem vida ao redor, provavelmente, invasores. Dentro do berço, uma bebê dormia, alheia ao massacre.

A Luna ergueu os olhos para ele – havia um lampejo de esperança ali.

– Pequeno Lucien... – ela sussurrou. – Você foi convocado. Sua família tem uma dívida de sangue comigo. Permito que a quite.

Lucien se ajoelhou, em choque.

– Leve minha filha, Alina, ao Alfa da Lua Sangrenta. E por 21 anos, proteja-a de todo mal – de clãs grandes e pequenos, da própria família e até de você mesmo! – Ela tossiu sangue, e, com os dedos trêmulos, desenhou um símbolo com o próprio sangue na minha testa.

– A dívida se encerrará quando minha filha completar 21 anos. Então você será livre. Ela é humana... talvez nunca se transforme. Mas há algo nela, algo adormecido. Proteja-a... é o meu último apelo.

E então, ela se foi.

Eu peguei Alina nos braços e corri, como se o próprio inferno estivesse à sua espreita. Cheguei na fronteira do território da Lua Sangrenta e Sangue da Aurora, e vi naquele momento o Alfa e a Luna do clã Lua Sangrenta vindo com um exército, tarde demais socorrer seus amigos.

Eu entreguei a bebê e contei o que testemunhara.

Dias depois, os líderes anunciaram que haviam adotado Alina – última herdeira do Sangue da Aurora. Isso legitimava a reivindicação do território do clã extinto e garantia proteção à criança.

O meu pai, no entanto, ficou furioso. Disse que eu deveria ter trazido a bebê ao meu próprio povo. Mas enfrentei a fúria do meu pai dizendo que deveria cumprir minha promessa – naquele instante, me tornara um guardião.

De corpo. De alma. De sangue.

– Lucien, a promessa já foi cumprida. – Insistiu Thomas, trazendo-me de volta à realidade. – Ela tem 21 anos. Por que continua agindo como se ainda estivesse preso ao juramento?

Virei-me lentamente, com meus olhos agora distantes.

– Quando você observa uma estrela por tempo demais, a luz dela começa a guiar seus passos mesmo na escuridão. – Respondi, e vi que minhas palavras deixaram Thomas pensativo.

– Isso não importa agora. – Bufou Thomas, tentando manter a autoridade. – Ela invadiu nosso território. O que devemos fazer?

Cruzei os braços, mantendo uma expressão indecifrável.

– Deixe isso comigo. – Respondi, antes de sair pela porta com passos decididos.

***

P.O.V. ALINA

Após poucas horas de sono, acordei com o corpo exausto e os pensamentos turvos. Refiz toda a minha rotina matinal, despedindo-me com beijos apressados da minha mãe e do meu pai antes de seguir para a faculdade. Em seguida, enfrentei o treinamento, como de costume.

Depois de um dia exaustivo, tudo o que eu mais desejava era o conforto da minha cama e uma noite inteira de sono sem interrupções.

No entanto, ao cruzar a porta de casa, um arrepio subiu pela minha espinha. Havia um homem sentado de costas à mesa da sala, conversando com meus pais em tom baixo e firme. Mesmo sem vê-lo de frente, meu coração soube imediatamente: Lucien.

Quando ele se virou ao notar minha presença, seus olhos me fitaram com intensidade. Meus pés hesitaram no chão, e um calafrio percorreu minha nuca.

– Alina, venha aqui! – Ordenou meu pai, a voz grave, inegociável.

Meu pai apenas apontou para a cadeira ao lado de Lucien, sem dizer uma palavra, mas seu olhar era uma convocação. Sentei-me devagar, como quem caminha para o julgamento.

– Lucien estava nos contando que você entrou nas terras dele sem permissão. – Disse meu pai, cruzando os braços. – Isso é verdade? – Pressionou, arqueando as sobrancelhas.

– Sim, pai. – Respondi cabisbaixa, a voz quase inaudível, não sabia o que dizer.

*Maldito delator, pensei, mordendo por dentro o canto da bochecha para conter a revolta.*

– Felizmente, Lucien sempre zelou por você. E provou isso mais uma vez ao impedir que seus homens a levassem para as masmorras do clã dele para investigação. – Continuou meu pai, com um peso que misturava reprovação e alívio. – Se fosse outro intruso, teria sido tratado com severidade.

Minha garganta secou.

– Lucien pediu gentilmente que você o acompanhe até o clã Sangue de Prata e permaneça em sua casa pelas próximas quatro semanas, assim todos pensarão que você esteve no clã dele como uma convidada. – Completou, com a formalidade de quem já havia decidido.

– O quê? – Explodi, encarando meu pai com incredulidade antes de voltar o olhar para Lucien, que se mantinha sereno, como se tudo aquilo fosse apenas protocolo.

– Pai, você só pode estar brincando! – Insisti, a voz falhando na tentativa de disfarçar o desespero.

– Filha, você não compreende a gravidade da situação? Lucien está lhe oferecendo uma chance rara. – Afirmou, firme, com um olhar que exigia maturidade.

– Mas... e a minha faculdade? O que eu vou fazer lá no clã dele? – Argumentei, tentando encontrar qualquer brecha.

– Você continuará frequentando a faculdade normalmente. - Interveio Lucien, pela primeira vez. Sua voz era baixa, profunda. – E durante esse período, você treinará com meus melhores guerreiros.

Senti um nó na garganta se formar.

– Vá arrumar suas coisas. Vocês partirão em uma hora. – Determinou meu pai.

Levantei-me sem forças e subi as escadas. Minha mãe veio logo atrás, sem dizer palavra.

No quarto, abri a mala com movimentos ríspidos, jogando roupas e objetos pessoais de forma desajeitada.

– Alina, sente-se aqui, minha filha. – Disse minha mãe com doçura, sentando-se na cama e dando leves tapinhas no espaço ao seu lado.

– O que foi, mãe? – Murmurei, arrastando-me até ela, o peso do cansaço e da revolta nos ombros.

– Não fique chateada. Isso é para o seu bem. – Falou com delicadeza, envolvendo meus ombros com o braço. – Se Lucien não tivesse pedido sua presença como hóspede, ele teria o direito de prendê-la e levá-la à força.

– É claro que seu pai e eu jamais permitiríamos isso... mas imagine a animosidade... – suspirou. – Houve guerras por muito menos, querida.

– Não é para tanto, mãe! – Rebati, bufando de impaciência.

– "Não é para tanto"? – Ela repetiu, arqueando uma sobrancelha. – Você invadiu o território de um dos Alfas mais poderosos da história para investigar sem a permissão dele. Só porque ele foi seu guardião durante anos, não quer dizer que ele vai tolerar suas atitudes para sempre.

Suspirei vencida e me aproximei, abraçando-a com ternura.

– Está bem, mãe. – Tentei acalmá-la.

– Vou te ajudar com a mala. - Disse ela, passando a mão com carinho pelos meus cabelos antes de se levantar para me ajudar.

Algum tempo depois, desci com a mala pronta. Quando cheguei ao meio da escada, Lucien se aproximou em silêncio e segurou a alça da bagagem, aliviando o peso de minhas mãos.

- Obrigada. - Murmurei, sem conseguir encará-lo diretamente.

Despedindo-me dos meus pais com abraços demorados.

Lucien fez uma reverência educada aos meus pais, antes de abrir a porta do passageiro para mim com um gesto cortês.

Com o coração apertado e o futuro incerto, entrei no carro que me levaria até o clã Sangue de Prata.

            
            

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