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O sol nascente banhava o território do clã Sangue de Prata com tons dourados e âmbar, fazendo as árvores ao redor da mansão parecerem feitas de fogo. Alina acordou cedo. Lucien não estava no quarto. Ela deu um suspiro de alívio. Seu corpo ainda carregava o torpor da noite mal dormida, mas sua mente estava alerta. Cada detalhe daquela manhã precisava ser calculado.
Ela se levantou e caminhou até o closet. Sua mala estava no canto, mas havia uma arara com roupas dispostas com uma precisão quase cirúrgica. Vestidos elegantes, saltos altos, peças de linho, seda, couro. Todas em tons sóbrios e marcantes. Havia um bilhete na parede, com uma frase:
"Sou intocável, mas desejável".
Alina escolheu um vestido de tecido leve, vinho profundo, com fenda lateral e mangas longas de renda que abraçavam os braços como se fossem tatuagens. Prendeu o cabelo em um coque frouxo, deixando algumas mechas soltas caírem como descuido calculado. Realçou os olhos – os verdadeiros, sem a lente – com delineado fino e batom discreto. O suficiente para provocar dúvida.
Quando desceu as escadas em direção ao salão de refeições, o silêncio caiu como uma sombra. Havia pelo menos vinte pessoas ali – o beta do clã, Theo... guerreiros, conselheiros, e três mulheres que pareciam ávidas por disputar espaço. Todos se viraram ao mesmo tempo, como se tivessem sentido o cheiro de algo novo.
Lucien já estava sentado à cabeceira, usando uma camisa preta com os três primeiros botões abertos e calça social escura. Ao vê-la, pousou a xícara de café com uma lentidão predatória, e seus olhos a percorreram como um lobo examinando sua presa.
– Bom dia, meu bem. – Ele disse, com um meio sorriso cínico, convidando-a com a mão estendida.
Alina engoliu seco, mas manteve o rosto erguido. Caminhou até ele, ignorando os olhares e sussurros. Sentou-se à sua esquerda. Lucien se inclinou, e sussurrou contra o cabelo dela:
– Você está estonteante. Exatamente como eu imaginei... quando sonhei com você ontem à noite.
Ela virou o rosto devagar, os olhos faiscando.
– Espero que tenha acordado envergonhado. – Alina falou baixinho.
– Acordei excitado. – Murmurou com um sorriso sem culpa.
Antes que ela pudesse responder, uma das mulheres à mesa – loira, corpo esculpido, e perfume tão forte quanto a antipatia nos olhos – se pronunciou.
– Alina, não sabíamos que você e o Alfa estavam... próximos. Isso é tão repentino. – Disse com um sorriso doce demais para ser sincero.
– Porque você não prestou atenção nos sinais. – Respondeu Lucien, sem desviar os olhos de Alina. – Eu a quero há muito tempo.
Alina tossiu discretamente, surpresa pela ousadia. Mas havia um brilho cínico no olhar dele. Era teatro. Um jogo. Só que ela não sabia mais se ele estava interpretando ou se divertindo.
– Então é oficial? - perguntou o Beta, desconfiado. – A senhorita Alina será nossa Luna?
Lucien pegou a mão da Alina sob a mesa e entrelaçou seus dedos com firmeza. Um calor elétrico subiu pelo braço dela.
– Ainda não. Mas será, se continuar sendo tão... perfeita. – Disse, beijando a mão dela com os lábios quentes e lentos, como se provasse um fruto proibido.
O salão ficou em silêncio.
– Querido, me mostre a cozinha... preciso de um café. – Disse ela em tom doce, sem desviar os olhos de Lucien, que sorriu de canto ao entender o jogo.
– Tem café na mesa, querida. – Ele respondeu, apontando com um gesto preguiçoso para o bule de porcelana ao centro da mesa.
– Está frio. – Replicou ela, já se levantando. Havia um brilho irritadiço em seus olhos.
Lucien assentiu para Theo com um leve aceno.
– Já volto.
Andou à frente dela pelo longo corredor até parar diante de uma porta de madeira maciça, escura e bem entalhada. Ele empurrou-a com leveza e então virou-se, abrindo passagem com a mão.
– Depois de você. – Murmurou com um timbre grave, quase rouco.
Assim que cruzaram o limiar da cozinha espaçosa e silenciosa, Alina se virou com rapidez. Os olhos brilhando com indignação contida.
- Qual é o seu problema? Por que beijou minha mão? Você disse no baile que não queria que eu te tocasse, e eu não quero você tocando-me desse jeito. - Disparou, cruzando os braços.
Lucien se aproximou, encurtando a distância entre eles, até que só o espaço do ar carregado de tensão os separava.
– Como você acha que eles vão acreditar em nós... se não virem como estamos ardendo de desejo um pelo outro? – Ele respondeu com calma, porém os olhos diziam outra coisa – algo perigoso, denso.
Alina bufou, virando-se para o balcão de mármore, abrindo um armário qualquer em busca de um bule limpo.
– E... E eu falei aquelas besteiras no baile porque fiquei bravo com você por ter defendido aquele filhote de lobo traiçoeiro. – Ele murmurou.
– Lucien, eu só aceitei essa loucura porque você me pediu isso de presente de aniversário. – Disse entre dentes, tentando manter as mãos firmes ao pegar uma chaleira de vidro.
O silêncio entre eles foi cortado apenas pelo som da água enchendo a chaleira.
Lucien apoiou-se na bancada ao lado, observando-a com um sorriso quase nostálgico.
Ela não precisou olhar para saber o que ele estava pensando.
Os dois sabiam. Sempre souberam.
Eles eram amigos - inquebráveis, íntimos, constantes – não importava o tempo, a distância ou os perigos. Nos aniversários, um sempre fazia os desejos do outro se tornarem reais. Era um pacto silencioso entre eles, antigo como suas memórias.
– É só por isso? – Lucien perguntou então, com uma voz baixa demais, como se confessasse algo que não podia conter.
Alina hesitou. Seus dedos pousaram no cabo do bule, mas ela não o ergueu.
– Sim. – Respondeu enfim, desviando o olhar, tentando soar indiferente. Mas a tensão em sua voz era uma rachadura visível.
Lucien se aproximou pelas costas de Alina. Sua presença era quente, invasiva.
Ela sentiu o hálito dele próximo à orelha, antes de se afastar rapidamente com o bule nas mãos.
Voltaram à mesa juntos, o cheiro de café fresco envolvendo a sala. A conversa prosseguia, e Lucien retomou o teatro como se nada tivesse acontecido. Seus gestos eram delicadamente possessivos – a mão pousada na cintura dela por tempo demais, os sorrisos cúmplices que passavam da linha tênue entre encenação e verdade.
Num desses momentos, Lucien inclinou-se e pousou um beijo demorado no rosto de Alina.
Ela sorriu para os outros, mas por dentro, o estômago revirava como se tivesse acabado de ser marcada.
Não pela encenação...
Mas pela lembrança viva do que não podia ser.
***
Mais tarde naquele dia, Alina vasculhava a biblioteca da mansão. Dizia a si mesma que estava ali para começar sua investigação – ler os registros de nascimento, desaparecimentos e correspondências antigas –, mas mal conseguia se concentrar. A presença de Lucien ainda pairava sobre sua pele, como o calor deixado por um toque ausente.
Ouviu passos firmes se aproximando. Não precisou virar-se para saber quem era.
Lucien entrou sem pedir permissão, como sempre. Estava com a camisa dobrada até os cotovelos, o cheiro amadeirado do perfume dele preencheu o ambiente antes mesmo que dissesse uma palavra.
– Já começou a trabalhar, detetive? – Perguntou, recostando-se na moldura da porta.
– Ao contrário de você, alguns de nós levam esse plano a sério. – Respondeu ela, sem levantar os olhos do livro aberto.
Ele caminhou lentamente até ela, contornando a mesa. Cada passo ecoava como um aviso. Alina fingiu não notar o modo como ele a observava – o modo como seus olhos percorriam as curvas dela por baixo do vestido justo que ainda usava.
– Ah, mas eu estou levando muito a sério. Sabe o que me disseram hoje? Que estou mais... animado do que o normal. – Ele se inclinou por trás dela, a voz roçando sua nuca. – Você está me deixando perigoso, Alina.
Ela se virou bruscamente, a cadeira rangendo no chão de madeira.
– E você está me distraindo. – Acusou.
– Então estamos quites. – Respondeu, aproximando-se mais. Seus rostos estavam a poucos centímetros de distância. – Você tem noção do que está fazendo comigo, Alina?
– Ninguém está olhando. Não precisa disso. – A voz de Alina veio grave, e baixa.
Ele franziu a testa.
Alina tentou manter a compostura, mas a respiração traiu sua fachada de controle. Seus ombros subiram num reflexo involuntário e seus olhos vacilaram por um segundo a mais sobre os dele.
– Lucien... isso tudo é encenação. Mas você me olha como se fosse me devorar. – Sussurrou, com a voz presa entre o medo e o desejo.
Um sorriso lento nasceu nos lábios dele. Não era um sorriso leve – era escuro, calculado, carregado de promessas que não tinham lugar à luz do dia.
– Talvez eu queira. – Murmurou. – Mas não vou. Não ainda.
A ponta dos dedos dele pairou sobre a cintura dela, como se desenhasse no ar a intenção de tocá-la, mas parou a um fio de distância. A ausência do toque fez mais efeito do que se a tivesse puxado contra si.
– O jogo só é divertido quando a presa acha que ainda pode escapar. – Completou, a voz tão sedosa quanto letal.
Alina sentiu um arrepio rastejar por sua coluna, acendendo pontos invisíveis sob a pele.
– E se a presa quiser lutar? – Perguntou, sem conseguir controlar o impulso da provocação.
O olhar de Lucien escureceu imediatamente. Havia fome ali. Mas não fome vulgar. Era uma fome cuidadosa, calculada – como a de um predador que aprecia o ritual antes do abate.
– Então eu a pego. E garanto... – ele inclinou-se até que sua boca quase roçasse a dela, mas não o fez. – que você nunca mais vai querer fugir.
O silêncio que se seguiu era denso demais para ser casual. Só havia o som dos dois respirando – devagar, pesado, um puxando o fôlego do outro.
– Preciso trabalhar. – Murmurou ela, virando o rosto de repente, como quem tenta escapar de um feitiço.
Mas ele foi mais rápido. Segurou-a pelo queixo, com firmeza. O toque não era brusco... era autoritário, contido na medida certa para fazê-la parar.
– Você vai fugir? – Perguntou, com aquele olhar cravado nela, faminto, ardendo em algo entre desejo e desafio.
Ela o encarou, fria como aço polido.
– Eu não fujo. E eu sei... que você nunca terá coragem para me reivindicar. – Disse, cada palavra como uma lâmina afiada.
Lucien arqueou uma sobrancelha, como se o orgulho tivesse sido ferido – e isso o excitasse ainda mais.
– Então... fuja. – Disse ele, a voz mais baixa, quase um sussurro selvagem.
Mas soou como um convite.
Ou uma ameaça.
E Alina soube, naquele momento, que fugir não era mais a questão.
Era quando ela escolheria parar de lutar.