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As luzes frias da sala de análise piscavam como se hesitassem em decidir entre o brilho e o colapso. O som baixo e contínuo dos servidores preenchia o ambiente com um zumbido constante, como um sussurro que nunca se calava. Aurora estava ali antes da hora, como sempre. Postura ereta, mãos cruzadas atrás das costas, a tela à frente já dividida em gráficos de desempenho, telemetria e registros de frenagem.
O carro 07 tinha problemas. E Killian D'Arcy era um deles.
Ela sabia que ele seria obrigado a participar da reunião. O que não sabia - o que não estava preparada para lidar - era com o silêncio tenso que se seguiria ao momento em que ele cruzasse aquela porta.
E então, ele entrou.
Não havia qualquer aviso, nem batida leve na madeira. Apenas o som da maçaneta cedendo e os passos firmes sobre o chão técnico da sala. Aurora não precisou se virar para saber que era ele. O ar mudava quando Killian entrava em qualquer lugar. Como se o oxigênio passasse a ser compartilhado com pólvora.
Ela não se virou. Continuou de frente para o monitor, como se ele fosse apenas mais um piloto. Como se o calor que subia por sua nuca não tivesse nada a ver com a presença dele atrás dela.
- Você estava errada. - A voz dele quebrou o silêncio como uma lâmina.
Ela finalmente virou o rosto, devagar. Killian estava recostado na parede, os braços cruzados, os olhos cravados nela com aquela intensidade que ela já começava a detestar por não conseguir ignorar.
- Me esclareça, por favor - respondeu, com a voz controlada, profissional. - Sobre qual das minhas muitas opiniões você se refere?
Ele descruzou os braços, caminhando até a mesa. Os olhos azuis varreram os gráficos, mas Aurora sabia que ele a observava pelo canto do olhar. Sabia porque sua pele parecia captar o movimento dele como se tivesse sensores próprios.
- Você disse que o problema era o sistema de frenagem. - Ele parou ao lado dela. Próximo demais. - Mas eu senti o carro puxando à direita. No miolo da curva. Isso é torque. Ou eixo. Ou você está perdendo a mão.
Ela deu um pequeno sorriso. Fino. Quase perigoso.
- Ou você está buscando alguém pra culpar porque não consegue mais dobrar a pista como fazia antes.
Ele riu. Um som curto. Sem humor.
- Acha mesmo que eu perdi o controle?
Ela virou-se, finalmente enfrentando-o de frente. E só então percebeu o quão perto estavam. Quase dava pra contar os cílios dele. Ou sentir o hálito, carregado de menta e arrogância.
- Não acho. - Sua voz baixou, rouca de tensão. - Mas sei reconhecer quando alguém tenta provar demais que ainda domina o mundo... só pra esconder o fato de que está, aos poucos, se afundando nele.
O silêncio entre eles ficou denso. O suficiente para que o leve chiado dos monitores parecesse alto demais. Ela viu algo vacilar no olhar dele. Por um segundo. Um segundo apenas. Mas o suficiente para fazer sua pulsação subir.
E então, Killian deu um passo à frente. Não ameaçador. Mas firme.
- Você sempre foi boa com palavras, Aurora. - A voz dele era quase um sussurro, mas com uma firmeza que parecia tremer no ar. - Pena que nenhuma delas muda o que você é.
Ela piscou devagar, sentindo as palavras como farpas.
- E o que eu sou, exatamente? - perguntou, a mandíbula tensa.
Os olhos dele a fitaram como se quisessem atravessá-la.
- A filha da mulher que destruiu a minha família. A garota que cresceu do lado de dentro enquanto eu via tudo desmoronar do lado de fora.
Aurora engoliu em seco. Mas não recuou.
- Eu era uma criança, Killian. Assim como você. Não escolhemos o que nossos pais fizeram.
Ele deu um meio sorriso. Mas era amargo. E ainda mais atraente por isso. Como tudo nele.
- Não. Mas você parece confortável o suficiente vivendo no lugar que meu pai escolheu pra mim antes de me jogar fora.
Ela sentiu a raiva subir como lava. Mas havia algo mais ali. Um desejo estranho. Cruel. Como se cada palavra dita com a intenção de feri-la abrisse espaço para algo ainda mais perigoso.
A tensão era tão densa que Aurora teve que desviar o olhar. E isso só o fez rir. Baixo. Sem piedade.
- Incomodada?
- Enjoada. - Ela devolveu, caminhando até o painel para mudar os dados. Precisava quebrar o contato visual. Precisava respirar.
Mas então sentiu.
O calor dele, bem atrás dela. O som da respiração. O silêncio entre uma provocação e outra. Killian havia se aproximado de novo, e agora estava tão perto que Aurora podia sentir o cheiro da pele dele. O couro. O suor leve do treino.
Ele não a tocou. Mas era como se o corpo dele ocupasse o mesmo espaço que o dela.
- Sabe o que me irrita mais? - A voz dele veio baixa, áspera, como o estalar de um fósforo. - O jeito como você anda. Como se nada disso te tocasse. Como se fosse intocável. Inatingível.
Aurora virou o rosto para ele, o nariz a centímetros do dele.
- E você queria me atingir, Killian?
Ele a olhou como se estivesse à beira de admitir algo. Mas então riu. Como quem se sabota antes de cair.
- Eu queria te esmagar.
Ela piscou devagar.
- Então tenta.
Ele ficou em silêncio. Mas os olhos disseram tudo. Azul turvo, escuro, cortando o ar entre eles.
Aurora voltou à tela.
- Dados prontos. Podemos terminar isso?
Killian deu um passo para trás, mas antes de sair da sala, virou-se uma última vez.
- Pode preparar o carro. Amanhã eu vou mostrar que ainda sei dobrar a pista. E talvez, só talvez, dobre você junto.
Ela manteve os olhos na tela, mesmo sentindo o corpo inteiro responder àquelas palavras como se fossem um toque.
Quando a porta se fechou, Aurora soltou o ar preso.
E pela primeira vez, admitiu a si mesma o que vinha temendo desde o reencontro.
Ela não estava apenas em perigo com Killian D'Arcy.
Estava fascinada por ele.
E isso... era ainda pior.