"A senhora Clara nos ligou mais cedo. Ela disse que o Leo não poderia mais frequentar e pediu para passarmos a vaga para uma menina chamada Lulu."
O sangue de João Miguel gelou.
De novo. Exatamente como na "visão". A vaga de Leo, dada para a filha de Victor.
"Isso é um engano," João Miguel disse, a voz tensa. "Leo vai sim. Estamos a caminho."
"Sinto muito, senhor, mas a senhora Clara foi bem incisiva. A vaga já foi preenchida pela Lulu. O pai dela, senhor Victor, acabou de trazê-la."
Raiva, choque, injustiça. Um turbilhão de emoções.
Leo percebeu a mudança no rosto do pai. "O que foi, papai?"
João Miguel tentou sorrir. "Nada, filho. Só um probleminha que o papai vai resolver."
Ele tentou ligar para Clara. Caixa postal.
Ligou de novo. E de novo. Nada.
Abriu o Instagram. Victor tinha acabado de postar um story.
Lulu, sorridente, vestindo o uniforme da escolinha, ao lado de Victor, que fazia um sinal de positivo.
A legenda: "Primeiro dia da minha princesinha na melhor escolinha de futebol da cidade! Talento de família! Obrigado ao meu amor, Clara, por tornar isso possível."
João Miguel sentiu a fúria subir. Contida, mas intensa.
"Leo, vamos dar uma passada na escolinha."
Chegando lá, viram Lulu no campo, desajeitada, mas claramente ocupando o lugar que deveria ser de Leo.
Clara estava na arquibancada, conversando animadamente com Victor.
João Miguel se aproximou com Leo.
"Clara!"
Ela se virou, surpresa, depois irritada.
"João? O que você está fazendo aqui? E por que trouxe o Leo?"
"Vim trazer o Leo para a aula dele. A vaga que você deu para a filha do seu amante."
Clara ficou vermelha. "Não fale assim do Victor! E a Lulu precisava mais dessa vaga. O Leo pode fazer futebol em outro lugar."
"Ele estava matriculado aqui, Clara! Ele estava ansioso por isso!"
Leo olhava de um para o outro, confuso e magoado. "Mamãe, eu quero jogar..."
"Leo, querido," Clara disse, forçando um sorriso. "Deixe a Lulu jogar hoje, sim? Ela é sua nova irmãzinha. Você tem que ser generoso."
"Nova irmãzinha?" João Miguel cuspiu as palavras. "Você está delirando."
"Não estou! E você, João, deveria ensinar seu filho a ser menos egoísta. A vida não é só sobre ele."
A hipocrisia dela era inacreditável.
Apesar da raiva, João Miguel tentou apelar para o bom senso dela, se é que existia algum.
"Clara, por favor. Devolva a vaga ao Leo. Isso é importante para ele."
Ela riu, com desdém. "Importante? É só futebol. Eu compro um videogame novo para ele, se ele quiser. A Lulu precisa socializar, o Victor disse que ela é muito tímida."
A prioridade inabalável dela por Victor e sua filha.
João Miguel sentiu o desespero da vida passada retornar. Mas desta vez, a resignação veio acompanhada de uma frieza calculada.
Ele tentou ir até o treinador, mas Clara o barrou fisicamente.
"Não piore as coisas, João."
Dois seguranças da escolinha, provavelmente chamados por ela ou Victor, se aproximaram.
"Algum problema, senhora?"
"Não, nenhum," Clara sorriu. "Meu ex-marido já está de saída."
Eles o seguraram discretamente até o final do horário da aula.
O treinador, constrangido, apenas confirmou que a decisão era irreversível. "Sinto muito, senhor."
Quando saíram, Victor se aproximou, um sorriso zombeteiro nos lábios.
"Que pena pelo seu garoto, hein, João? Mas a Lulu tem mais talento natural, você não acha?"
Clara, ao lado dele, concordou. "O Victor é tão generoso em compartilhar as coisas da Lulu. Você deveria aprender com ele, João. E pare de mentir para o Leo, dizendo que ele tinha uma vaga."
A cegueira dela para a verdade era total.
João Miguel apenas pegou Leo pela mão e se afastou, o coração pesado de humilhação e raiva.