A enfermeira sorriu. "A sua família ligou há pouco. A sua irmã, a noiva, disseram que não podiam vir, muito ocupadas com os preparativos finais do casamento. Mas mandaram recomendações e disseram que pagariam a conta."
A ironia da situação não passou despercebida a Sofia.
Pagar a conta, como se isso compensasse a ausência, o desprezo.
Indiferença e mágoa preencheram o vazio no seu peito.
"Obrigada," disse Sofia, a voz neutra.
A enfermeira pareceu surpreendida com a sua frieza, com a ausência de lágrimas ou queixas.
Esta Sofia era diferente da rapariga assustada e submissa que dera entrada na noite anterior.
O desapego dela era palpável.
Mais tarde, ouviu duas auxiliares a cochichar no corredor.
"Coitadinha da rapariga, a família nem quer saber dela."
"Ouvi dizer que a irmã é a preferida, vai casar com um ricaço. Esta aqui só dá problemas."
A confirmação da injustiça que sofrera, vinda de estranhos, já não a feria como antes.
Era apenas um facto.
Aceitara a realidade cruel da sua vida.
Os pais viam-na como um fardo, um erro, exceto quando precisavam dela para Beatriz.
Beatriz via-a como uma rival a ser esmagada.
Diogo via-a como uma mentirosa invejosa.
"Eles têm a vida deles," pensou Sofia, enquanto olhava pela janela do hospital para o céu cinzento do Porto. "Eu terei a minha."
A solidão era uma companheira antiga, mas agora trazia consigo uma nova força interior.
Quando teve alta, dois dias depois, foi ela própria quem tratou da papelada e chamou um táxi.
Ninguém da família apareceu. Ninguém ligou.
Ao chegar a casa, encontrou os pais e Beatriz na sala, a discutir animadamente os detalhes do casamento.
Flores, música, a lista de convidados.
Beatriz usava um vestido novo, caro, e exibia o anel de noivado de forma ostensiva.
Os pais olhavam para ela com orgulho e adoração.
Sofia passou por eles em silêncio, dirigindo-se ao seu quarto.
A dor silenciosa de ser invisível era uma velha conhecida.
A cena apenas confirmava o favoritismo gritante que sempre existira.
"Sofia, querida!" chamou Beatriz, a voz falsamente doce. "Ainda bem que chegaste. Estava preocupada contigo."
Sofia parou à entrada do seu quarto, sem se virar.
"Não precisas de te preocupar, Beatriz. Estou ótima."
"Ótima? Depois de estragares a minha festa de noivado com o teu desmaio?" A voz de Beatriz tornou-se sibilante.
Diogo, que chegara nesse momento e ouvira a última parte, interveio.
"Beatriz tem razão, Sofia. Tens uma maneira incrível de chamar a atenção, sempre a fazer-te de vítima."
As palavras dele, cortantes, ainda tinham o poder de a magoar, mas a ferida já não era tão profunda.
Era como tocar numa cicatriz antiga.
Sofia lembrou-se de uma tarde, muitos anos antes.
Tinha sete anos, Beatriz nove.
Beatriz empurrara-a das escadas porque Sofia pegara numa boneca que Beatriz já não usava.
Sofia partira um braço.
Quando os pais chegaram, Beatriz chorava, dizendo que Sofia a tinha atacado e caído sozinha.
Os pais acreditaram em Beatriz, como sempre.
Sofia ficou de castigo, com o braço engessado, acusada de ser má e mentirosa.
O padrão de abuso e injustiça começara cedo.
Essa memória, e tantas outras, solidificaram a sua resolução.
"Não quero estragar mais nada," disse Sofia, virando-se lentamente para encará-los. Havia uma calma assustadora nos seus olhos. "Por isso, vou aceitar a vossa sugestão do retiro."
Beatriz sorriu, triunfante.
"Ótimo. Assim não causas mais problemas no dia do meu casamento."
"Não te preocupes, Beatriz," respondeu Sofia, a voz fria como gelo. "Depois do teu casamento, nunca mais me verão. Nunca mais causarei problemas a ninguém desta família."
A sua nova filosofia de vida era simples: paz e desapego.
Ela ia cortar todos os laços.
Beatriz aproximou-se dela, o olhar provocador.
"Ainda sonhas com o Diogo, não é, irmãzinha? Achas que ele alguma vez olharia para ti, uma simples dadora de órgãos, uma sombra?"
A irritação faiscou nos olhos de Sofia, mas ela controlou-se.
O desprezo de Beatriz era veneno puro.
"O Diogo é todo teu, Beatriz. Aproveita bem."
A resposta calma e desapegada de Sofia pareceu desarmar Beatriz por um momento.
Esperava lágrimas, raiva, mas encontrou apenas indiferença.
"Claro que é todo meu," Beatriz recuperou a arrogância. "Ele ama-me. Ele escolheu-me. Tu és apenas uma nota de rodapé esquecida na nossa história de amor."
Sofia limitou-se a encolher os ombros.
"Se é isso que te faz feliz acreditar, Beatriz."
Virou costas e entrou no seu quarto, fechando a porta suavemente.
Lá dentro, começou a fazer as malas. Não para um convento, mas para uma nova vida.
Uma vida onde ela seria a protagonista, não uma figurante sofredora.