"Vou doar tudo, Ricardo," ela respondeu, a voz neutra. "Depois da morte do papai, percebi que essas coisas não têm importância. Quero uma vida mais simples."
Ricardo pareceu aliviado. Talvez pensasse que a dor a estava tornando mais "espiritualizada".
"Que bom que pensa assim, querida. Mas não se preocupe, quando essa fase passar, comprarei tudo novo para você, ainda mais bonito."
Sofia apenas sorriu, um sorriso que não alcançou os olhos. A cegueira dele era impressionante. Ele não via nada além do próprio reflexo.
Ele tentou abraçá-la, falar sobre o futuro, sobre o "nosso filho". Sofia sentiu repulsa, mas manteve a compostura. O telefone dele tocou, interrompendo o momento. Era Clara, novamente.
"Alô, Clara? Sim, claro. Um almoço de boas-vindas? Ótima ideia!"
Ele desligou e virou-se para Sofia, animado. "Clara nos convidou para um almoço no sítio do Tio Afonso no fim de semana. Para comemorar a volta dela. Você vai, não é?"
Ele nem esperou a resposta, já assumindo que ela iria. A presença de Clara era mais importante que o luto recente de Sofia, mais importante que qualquer coisa.
Ricardo tentou justificar a animação. "Vai ser bom para você sair um pouco, se distrair."
Sofia permaneceu impassível. "Claro, Ricardo. Eu vou."
Ele sorriu, satisfeito. "Ótimo. Ah, e Clara mencionou que adoraria um vinho especial. Você, como enóloga, poderia escolher um bom rótulo para levarmos de presente. Algo que ela realmente goste."
Usá-la como intermediária. Que patético. Sofia assentiu, a amargura crescendo dentro dela.
No sábado, chegaram ao sítio do Tio Afonso. Clara estava radiante, conversando animadamente com os parentes. Quando viu Ricardo, seus olhos brilharam. Eles se abraçaram demoradamente. Tio Afonso apresentou Sofia.
"Ricardo, esta é sua esposa, Sofia?" Clara perguntou, com uma surpresa talvez ensaiada.
"Sim, Clara. Minha Sofia." Ricardo disse, com um orgulho que soou oco aos ouvidos de Sofia.
Sofia observou a interação entre os dois. As trocas de olhares, os sorrisos cúmplices, a química inegável. Era como se ela fosse uma espectadora de um filme antigo, um romance que nunca teve fim.
O vinho que Sofia escolhera, um raro exemplar português, foi entregue a Clara.
"Que maravilha, Ricardo! Você sempre teve um gosto impecável," Clara exclamou, ignorando Sofia.
"Foi Sofia quem escolheu," Ricardo disse, quase como uma reflexão tardia.
"Ah, sim? Que bom gosto," Clara comentou, com um sorriso rápido para Sofia, um sorriso que não escondia o desinteresse. Sofia respondeu com um leve aceno, pensando no quão irônico era aquele "bom gosto" dele.
Durante o almoço, a atenção de Ricardo era toda para Clara. Ele servia o prato dela, perguntava se ela precisava de algo, ria de suas piadas. Sofia, sentada ao lado, era praticamente invisível. Ele se lembrava dos pratos preferidos de Clara, das suas restrições alimentares, dos seus gostos. Coisas que, em três anos de casamento, ele nunca se dera ao trabalho de aprender sobre Sofia. A negligência era palpável, dolorosa. Sofia comia em silêncio, cada garfada um lembrete da sua insignificância para o homem ao seu lado. A mudança nele era evidente, ou talvez, ele apenas estivesse sendo quem realmente era, sem o disfarce.