Ricardo apareceu no apartamento no momento em que Sofia se preparava para sair com Clara.
"Onde vocês vão?" ele perguntou, desconfiado.
"Ao cemitério, visitar meus pais," Clara respondeu, antes que Sofia pudesse dizer algo.
"Ah, sim. Eu adoraria ir, mas tenho uma reunião inadiável," ele disse, a desculpa pronta, a manipulação sutil. Sofia apenas observou, a máscara dele cada vez mais transparente.
No cemitério, Clara tentava consolar Sofia pela perda recente do pai.
"Ricardo cuidará bem de você e do bebê, Sofia. Ele é um bom homem."
Sofia achou a afirmação irônica, quase cômica. "Eu sei, Clara. Ele é... atencioso." O monólogo interno dela era bem diferente.
"Estou pensando em recomeçar, Clara," Sofia disse, a voz firme. "Um novo começo."
"Claro, querida. Com Ricardo ao seu lado, tudo será mais fácil."
Sofia sorriu enigmaticamente. "Um novo começo. Mas não com Ricardo." Clara não pareceu entender o subtexto.
No carro, na volta, Ricardo ligou. Colocou no viva-voz. Ele e Clara engataram numa conversa fluida, íntima, cheia de lembranças e piadas internas. Falavam sobre vinhos, viagens, amigos em comum. Sofia, no banco de trás, sentia-se uma intrusa, uma espectadora de uma peça que não era a sua. A sintonia entre eles era palpável, uma conexão profunda que ela nunca tivera com Ricardo. A dor da exclusão era aguda. Ela percebeu que a ligação deles era algo que ela jamais alcançaria, porque ela nunca fora parte da equação real.
Decidiram almoçar num restaurante elegante. Ricardo, por hábito, entregou o menu a Clara.
"Para Sofia primeiro, Ricardo," Clara disse, com um sorriso gentil, redirecionando o menu.
Sofia pediu uma salada simples e um suco.
"Só isso, Sofia? Você precisa se alimentar bem, por causa do bebê," Ricardo criticou, com falsa preocupação.
"Você nem parece grávida, Sofia. Está tão magra," Clara comentou, os olhos curiosos fixos na barriga de Sofia. A tensão era quase palpável.
De repente, um garçom apressado tropeçou, derramando uma sopeira fumegante na direção da mesa. Instintivamente, Ricardo puxou Clara para protegê-la, usando o próprio corpo como escudo. A sopa quente atingiu Sofia em cheio, no braço e no colo. A dor foi lancinante, queimando sua pele. Ricardo nem olhou para ela. Sua única preocupação era Clara.
"Você está bem, Clara? Se machucou?" ele perguntou, a voz cheia de pânico.
Sofia, gemendo de dor, viu a cena com uma clareza terrível. A prioridade dele, mais uma vez, revelada de forma brutal.
Clara, pálida, insistia: "Ricardo, a Sofia! Ela se queimou!"
Ele olhou para Sofia como se só então notasse sua presença, sua dor. "Ah, sim. Vamos cuidar disso." Mas seus olhos voltaram rapidamente para Clara. "Você tem certeza que está bem?"
Sofia ouviu a troca de palavras, a preocupação genuína dele por Clara, o cuidado superficial dispensado a ela. Era a confirmação final, o último prego no caixão de suas ilusões.