Das Cinzas, a Minha Voz
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Capítulo 1

A minha carreira estava no auge. Eu era Ana Luísa, a fadista que enchia as casas de fados de Lisboa com a minha voz. Tinha tudo: sucesso, independência financeira e Diogo.

Diogo, o arquiteto de renome, o homem que todos diziam ser o parceiro perfeito.

Tínhamos cinco anos de uma paixão que parecia saída de um filme. A nossa casa, projetada por ele, era uma obra de arte.

Naquela noite, depois de um concerto esgotado, ele abraçou-me com aquele seu jeito protetor.

"Meu amor, a tua voz é um tesouro. Não podemos arriscar perdê-la."

Eu sabia o que ele queria dizer. Falávamos sobre isso. Filhos.

"A maternidade mudaria tudo, Ana Luísa. O teu corpo, o teu fôlego, a tua dedicação. Eu não aguentaria ver a tua arte diminuída."

As suas palavras eram sempre "amorosas". Ele queria proteger-me, proteger a "nossa" vida perfeita. E eu, cega de amor, concordei. Fizemos um pacto: sem filhos, para que a minha voz pudesse voar para sempre.

Uma semana depois, ele chegou a casa com uma notícia.

"Lembras-te da Sofia? A filha do caseiro da quinta dos meus pais no Douro?"

Claro que me lembrava. Uma rapariga simples que, segundo ele, o tinha salvo de um acidente na adega há muitos anos.

"Ela está doente, meu amor. Uma doença sanguínea rara. Precisa de tratamento aqui em Lisboa, e não tem onde ficar. Pensei em trazê-la, a ela e aos dois filhos pequenos, para a casa de hóspedes."

O meu coração, sempre generoso, não hesitou.

"Claro, Diogo. Ela precisa da nossa ajuda."

Ele sorriu, o seu sorriso carismático que desarmava qualquer um.

"Eu sabia que podia contar contigo."

Sofia e os seus filhos, Mateus e Leonor, instalaram-se. Eram crianças silenciosas, com olhos que me pareciam estranhamente familiares.

Pouco tempo depois, o drama aumentou.

"A Sofia precisa de um transplante de medula óssea urgente," disse-me Diogo, com o rosto carregado de preocupação. "Fizemos os testes. E, por um milagre... tu és compatível."

Ele segurou as minhas mãos, os seus olhos suplicantes.

"Ana Luísa, eu sei que é muito para pedir. Mas podes salvar-lhe a vida. Faremos tudo em segredo, com anestesia geral, para não te causar qualquer stress."

Salvar uma vida. Como poderia eu recusar?

A cirurgia foi rápida. Quando acordei, sentia um cansaço que nunca tinha conhecido. As semanas passaram, e a exaustão não desaparecia.

Pior, a minha voz.

No palco, onde antes dominava, agora falhava. Faltava-lhe o brilho, a força. O meu fôlego era curto. O pânico começou a instalar-se.

Diogo consolava-me. "É temporário, meu amor. O teu corpo só precisa de recuperar."

Mas não recuperava. Desesperada, marquei uma consulta com um especialista de renome em Genebra, sem dizer nada a Diogo.

No consultório suíço, o médico olhou para os meus exames com uma expressão grave.

"Senhora Ana Luísa, os seus registos médicos de Lisboa foram falsificados."

Senti o chão a desaparecer debaixo dos meus pés.

"O quê?"

"A quantidade de medula óssea que lhe foi retirada foi excessiva. Extremamente excessiva. Este tipo de procedimento, com esta quantidade, não é para tratar uma doença sanguínea. É para preparar uma mulher para uma gravidez de alto risco, para fortalecer o útero e garantir que a gestação chegue ao fim."

A sua voz ecoava na sala silenciosa, mas eu já não ouvia.

Uma gravidez de alto risco.

As imagens surgiram na minha mente. Os olhos das crianças. A "dívida de vida" de Diogo para com Sofia. O nosso pacto de não ter filhos.

Tudo se encaixou com uma clareza brutal e doentia.

Conduzi como uma louca até à quinta da família de Diogo no Douro. Precisava de o confrontar, de ouvir a negação da sua boca.

Estacionei o carro e corri para a casa principal. As vozes vinham do escritório. Uma discussão acalorada.

Era Diogo e a sua mãe, a matriarca austera do império vinícola.

"Como pudeste ser tão descuidado?", dizia ela, a voz fria como aço. "Deixaste a criada engravidar de gémeos! E agora metes a amante e os bastardos debaixo do mesmo teto que a tua mulher? Estás a arriscar o nome da nossa família!"

Bastardos. Gémeos. Amante.

A verdade não foi uma revelação. Foi uma sentença de morte. A minha vida, o meu amor, a minha carreira... tudo uma mentira construída sobre o meu sacrifício.

Senti as pernas fraquejarem e caí de joelhos no chão de pedra fria do corredor.

Ele não me amava. Ele tinha-me usado. Tinha roubado a minha saúde, a minha voz, para dar herdeiros à sua família com outra mulher.

Quando regressei a Lisboa, a casa estava silenciosa. Fui diretamente para o meu estúdio, o meu santuário.

E lá, no canto, estava a minha guitarra portuguesa. Uma peça antiga, rara, uma oferta de Diogo no nosso primeiro aniversário. Era a minha posse mais preciosa.

Mas não estava no seu lugar de honra. Estava encostada a uma parede, como lixo.

As cordas estavam partidas.

O corpo de madeira escura estava manchado com o vermelho pegajoso de vinho do Porto.

Ao lado, no chão, estava um telemóvel. O de Sofia. O ecrã estava aceso, mostrando a última foto que ela tinha tirado.

Era ela, seminua, a segurar a minha guitarra como um adereço vulgar, a boca manchada de vinho, a olhar para a câmara com um sorriso sedutor. A foto tinha sido enviada para Diogo.

A profanação era total. Não era só a guitarra. Era o nosso amor, a minha arte, a minha alma. Tudo manchado, partido, destruído.

Sofia, sentindo-se vitoriosa, começou a sua tortura psicológica.

Recebi o primeiro vídeo. Ela e Diogo na nossa cama, a rirem-se.

"Ele diz que sou mais quente que o fado," dizia a legenda.

Depois vieram os filhos. Um dia, encontrei um dos meus vestidos de alta-costura, um presente de um designer famoso, manchado com sumo de uva.

"Foi sem querer, Ana Luísa," disse Leonor, com uma inocência fingida que não chegava aos seus olhos. Olhos que eram exatamente como os de Diogo.

O ponto de viragem aconteceu durante um pequeno evento que demos em casa para a elite de Lisboa.

Sofia, "frágil" e "doente", descia as escadas. Quando passou por mim, tropeçou e rebolou pelos degraus.

Um grito coletivo encheu a sala.

Diogo correu para ela, ignorando-me completamente.

"O que aconteceu?", gritou ele.

Sofia, a chorar nos seus braços, apontou um dedo trémulo na minha direção.

"Ela... ela empurrou-me."

Todos os olhos se viraram para mim. Vi a acusação, a desilusão no rosto de Diogo. Ele não hesitou um segundo. Ele acreditou nela.

Naquele momento, o amor que eu sentia por ele não se transformou em cinzas. Simplesmente deixou de existir. O espaço que ele ocupava no meu coração ficou vazio e frio.

Na manhã seguinte, enquanto Diogo me tratava com uma frieza cortante, fiz uma chamada.

"Estou a falar com o Dr. Almeida, o melhor advogado de divórcios do país? Preciso dos seus serviços. E de uma equipa de gestão de crises."

Durante uma semana, planeei tudo em segredo. A minha vingança. A minha fuga.

A noite chegou. A cerimónia de entrega do Prémio Nacional de Arquitetura. O maior evento do ano. Diogo era o orador principal.

Ele subiu ao palco, no auge da sua glória, a personificação do sucesso e do carisma.

Começou o seu discurso. A sua voz ressoava no auditório, falando de integridade, de visão, de legado.

No meio do seu discurso, as portas do fundo abriram-se.

O meu advogado, o Dr. Almeida, caminhou pelo corredor central, calmo e implacável. Subiu os degraus do palco.

Parou em frente a um Diogo confuso e, em frente a toda a elite do país e às câmaras de televisão, entregou-lhe os papéis do processo.

"Senhor Diogo, em nome da minha cliente, Ana Luísa, venho por este meio notificá-lo do nosso pedido de divórcio."

O silêncio no auditório foi ensurdecedor. Depois, o caos.

Enquanto os flashes das câmaras explodiam e o escândalo rebentava, eu já não estava lá.

Estava sentada num avião, a caminho de Paris. A caminho de Tiago.

Tiago, o meu primeiro guitarrista, o virtuoso da guitarra portuguesa que sempre me amou em silêncio. Ele tinha-se mudado para Paris para seguir a sua carreira, mas quando soube do que se passava, ofereceu o seu apoio incondicional.

Diogo, ao descobrir a verdade sobre as mentiras de Sofia – a falsa doença, a manipulação –, ficou obcecado. Não por ela, mas por mim.

Seguiu-me até Paris. Encontrou-me num pequeno café.

"Ana Luísa, tudo o que fiz foi por amor. Para te proteger," disse ele, a sua lógica distorcida a tentar encontrar um caminho de volta para a minha vida.

Eu olhei para ele, um estranho. Não havia nada para dizer.

Rejeitado, a sua fúria virou-se para a única pessoa que lhe restava.

Regressou a Portugal e destruiu Sofia. Expulsou-a da sua vida. Internou-a à força numa clínica psiquiátrica, alegando "instabilidade mental". Enviou Mateus e Leonor para um colégio interno na Suíça, garantindo que nunca teriam o seu nome ou a sua fortuna.

Mas o meu golpe final ainda estava para vir.

De Paris, com Tiago ao meu lado, lancei um novo fado.

A letra era uma metáfora da minha dor, da minha traição, da minha resiliência. Não mencionava nomes, mas toda a gente entendeu. A canção tornou-se um hino nacional.

Simultaneamente, os vídeos que Sofia me tinha enviado foram "vazados" para a revista de sociedade mais lida do país. As imagens de Diogo com a sua amante, na cama que partilhava comigo, destruíram o que restava da sua reputação.

A história termina comigo. Eu, numa digressão mundial, com Tiago como meu guitarrista e, lentamente, como meu parceiro. A minha voz, mais forte e mais emotiva do que nunca, renascida da dor.

E Diogo?

Ele ficou sozinho na sua mansão vazia. Um rei deposto no seu império em ruínas. Assombrado pelo eco da minha voz, a voz que ele tentou silenciar e que, no fim, se tornou a sua sentença.

O seu lema de "até que a morte nos separe" tornou-se uma realidade. O divórcio deixou-o socialmente morto.

            
            

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