"Quanto tempo?" consegui finalmente perguntar, a voz rouca.
"É difícil dizer com exatidão," respondeu ele, evasivo. "Alguns meses, talvez menos sem tratamento agressivo. Com tratamento, podemos tentar ganhar algum tempo, mas a qualidade de vida..."
Abanei a cabeça. Não queria tratamentos agressivos que me deixassem ainda mais debilitada.
Queria... queria o quê?
Lembrei-me de Coimbra, da universidade, dos corredores de pedra fria onde conheci o Tiago.
Ele era um estudante de enologia, sonhador, com as mãos sempre sujas de terra e o cheiro a uvas entranhado na pele.
Eu, uma aspirante a tradutora, fascinada pela sua paixão.
A imagem dele a sorrir, os olhos brilhantes enquanto me falava da sua pequena vinha no Douro, invadiu-me a mente.
"Vamos erguer isto juntos, Bela," dizia ele, a voz cheia de esperança.
E erguemos.
Trabalhei em traduções de manuais técnicos vinícolas, ajudei-o com a burocracia, sacrifiquei as minhas próprias ambições para que a "Quinta do Tiago" se tornasse a marca de renome que era hoje.
O nosso amor era como um vinho jovem, vibrante e cheio de promessa.
Agora, tudo o que restava era um sabor amargo na boca.
O sucesso subiu-lhe à cabeça.
As viagens de negócios tornaram-se mais frequentes, as ausências mais longas.
E depois apareceu a Carolina.
A gestora de marketing. Ambiciosa, calculista, com um sorriso que nunca chegava aos olhos.
Começaram os jantares de trabalho tardios, as mensagens trocadas às escondidas.
O Tiago que eu amava desapareceu, substituído por um estranho frio e distante.
O ressentimento dele por eu não conseguir engravidar, um fantasma que nos assombrava há anos, tornou-se uma arma nas suas mãos, nas mãos dela.
"Talvez o problema não seja meu, Isabela," dissera ele uma vez, a voz gélida, depois de mais uma tentativa falhada de fertilização.
As palavras dele ainda me queimavam.
Ajeitei a mala no ombro, o peso dos papéis do médico a esmagar-me.
Saí do consultório, a decisão já tomada.
Não lhe contaria. Não ainda.
Para quê? Para ver a falsa compaixão nos seus olhos? Para ouvir mais acusações veladas?
Não.
Este fardo, carregá-lo-ia sozinha.
Cheguei a casa, o nosso apartamento em Coimbra, outrora um ninho de amor, agora um mausoléu de memórias.
O silêncio era ensurdecedor.
Tiago estava, como sempre ultimamente, no Douro. Com ela, provavelmente.
Fui até à estante, procurando um livro qualquer para me distrair.
Os meus dedos roçaram um objeto esquecido, escondido atrás de uma fila de romances.
Um velho gira-discos que o Tiago me tinha oferecido nos nossos primeiros tempos.
Estava partido. Uma das agulhas tinha-se perdido há anos.
Como nós.
Ao lado, um pequeno caderno de notas, de capa dura, azul-escura.
O meu caderno de traduções.
Mas não continha apenas termos técnicos e listas de vocabulário.
Nas margens, nas páginas em branco, eu desabafava.
Pequenos poemas, pensamentos soltos, a crónica da nossa ascensão e da nossa queda.
Abri-o ao acaso.
"Hoje o Tiago vendeu a primeira grande encomenda. Celebramos com um vinho barato e sonhos caros. Sinto que podemos conquistar o mundo."
A caligrafia era a minha, mas parecia de outra pessoa, de outra vida.
Folheei mais algumas páginas.
"Ele está diferente. Distante. A Carolina ligou outra vez. Diz que é trabalho."
A última entrada era de há poucas semanas.
"A dor no peito voltou. Ele nem reparou."
Um conflito rasgou-me por dentro.
Devia mostrar-lhe? Devia esfregar-lhe na cara a dimensão da sua traição, da sua negligência?
Ou devia simplesmente desaparecer, levando comigo o segredo da minha doença e a dor do nosso amor desfeito?
Um humor cínico apoderou-se de mim.
Ele nem sequer notaria a minha ausência, quanto mais a falta deste caderno.
A chave a rodar na fechadura sobressaltou-me.
Tiago.
Entrou de rompante, a cara fechada, o telemóvel encostado à orelha.
"Sim, Carolina, já estou a tratar disso. Relaxa."
Desligou a chamada e olhou para mim, os olhos frios a varrerem o caderno nas minhas mãos.
"O que é isso?" perguntou, a voz ríspida. "Andas a remexer em coisas velhas? Não tens mais nada que fazer?"
O choque da sua hostilidade imediata atingiu-me como um soco.
"São só... memórias," murmurei, a voz a falhar.
Ele riu, um som seco, desprovido de alegria.
"Memórias? Devias era pensar no futuro. Num futuro em que não me chateias com os teus dramas."
A dor no meu peito intensificou-se, uma pontada aguda que me fez engolir em seco.
Ele não via. Não queria ver.
A desilusão era um nó apertado na minha garganta.
Lembrei-me de uma noite, há muitos anos, quando tive uma gripe forte.
Ele cuidou de mim com uma ternura infinita.
Fez-me canja, mediu-me a febre de hora a hora, não saiu do meu lado até eu adormecer.
Onde estava esse Tiago?
A frieza dele agora era uma lâmina a cortar-me a alma.
Ele aproximou-se, o cheiro do perfume caro dela a precedê-lo.
"Olha, Isabela," começou, num tom falsamente conciliador, "eu sei que as coisas não têm estado fáceis. A pressão do negócio, a Carolina a precisar de mim para fechar aquele contrato internacional..."
Interrompi-o, a voz mais firme do que esperava.
"Não fales dela. Não aqui."
Ele revirou os olhos.
"Sempre o mesmo drama. A Carolina é essencial para a empresa. E, francamente, tem sido um apoio que tu não me dás há muito tempo."
Traição. A palavra ecoava na minha cabeça.
Anseava pelo passado, por um tempo em que éramos nós contra o mundo.
Agora, era ele e ela contra mim.
Ele pegou no telemóvel outra vez, um sorriso a desenhar-se-lhe nos lábios enquanto lia uma mensagem.
Provavelmente dela.
Exibicionismo ostensivo. Queria magoar-me.
"Tiago," disse eu, a voz embargada, "acho que devíamos separar-nos."
A palavra "divórcio" pairou no ar, pesada, definitiva.
Ele olhou para mim, o sorriso a desaparecer, substituído por uma expressão de desprezo.
"Separar? Não sejas ridícula, Isabela. Estás a ser melodramática. Temos um império para gerir. Não tenho tempo para estas tuas crises."
Agarrou num casaco que estava pousado no sofá.
"Tenho de ir. A Carolina está à minha espera para um jantar importante."
Bateu a porta atrás de si, deixando-me sozinha com o eco das suas palavras cruéis e a certeza do meu fim.
O meu fim. E o fim de nós.
A dor física voltou com força, uma garra a apertar-me o peito e as costas.
Curvei-me, a respiração ofegante.
Tentei ligar-lhe. Caixa de correio.
Claro. Estava com ela.
Fui até ao calendário na cozinha. Marquei o dia de hoje com um X vermelho.
A finalidade da minha situação abateu-se sobre mim com um peso esmagador.
Não havia mais nada a fazer.
Era o início do fim.