Capítulo 2 Um Sonho, Um Significado

Simon Jhallen estava de volta à aldeia, porém tudo estava errado logo que os seus pés pisaram novamente naquela terra. Uma maldição morava ali e o cheiro da morte sem evidências pairava pelos ares poluídos pela tensão constante.

Uma árvore enorme tinha como companhia a noite sem lua e com o som das corujas e lobos. Nenhum homem por perto, nenhuma mulher caminhando e nenhuma criança correndo entre as casas. Nenhum rastro de Daimon e de repente instalou-se por completo a surdez.

Apenas o silêncio e a lua repentinamente espreitou, iluminando o lugar com preguiça.

E aí - eles apareceram.

Dois leões do tamanho da árvore Nungu, a mais enorme da aldeia. Um, prateado como a lâmina de uma faca, outro, negro como carvão banhado de óleo.

O vento começou sem aviso a assoviar. Os lobos e as corujas avisaram e o caos começou.

Eles saltaram um contra o outro, músculos retesados, garras sangrando o vento. Seus rugidos sacudindo a terra. O vento uivava, arrancando palha dos telhados, vergando troncos como se fossem gravetos.

Cada ataque à aldeia o mundo inteiro balançava num terramoto absurdo e nisso Simon Jhallen não conseguia aproximar-se das duas criaturas. Ele estava parado e congelado sentindo as ondas do medo tomando conta do seu corpo. Toda a pele arrepiada e tambores instalados no peito produzindo batidas aceleradas e sufocantes.

- Malditos - Simon disse para ele mesmo com uma voz baixa, mas soou alto, roubando a atenção das duas criaturas que pausaram a batalha por segundos para olhar nos olhos do caçador.

Ele viu quatro esferas quentes e ardentes da cor vermelha pairando como dois demônios famintos por uma alma impura. O homem recuou e de repente no lugar dos dois leões viu um homem ajoelhado de costas para si.

Pela aparência, era um velho. Chorava ali e algumas vezes cavava com as mãos a terra perto da árvore. A sua maneira de cavar era peculiar e assombraria a qualquer indivíduo. De repente a sua pele começou a apodrecer e cheiro pútrido escapou do velho corpo.

Aos poucos o fedor foi ficando mais forte, nojento, horrível, enjoativo. Simon tapou o seu nariz.

- Você está aí, né? Seu maldito caçador? Você está aí, seu maldito? - disse a voz grotesca do velho ajoelhado na árvore, enquanto o seu corpo perdia a carne e um esqueleto se formava.

Era uma junção de vozes grotescas falando em simultâneo, pareceu o que Simon já estava acostumado a enfrentar na sua profissão, quando lidava com almas sequestradas.

As mãos do velho apertaram o pescoço do caçador que viu nenhum rosto, pois era inexistente - nenhum olho, nariz, boca e nem pêlos. Simon lutou por alguns segundos e o velho desapareceu.

Os leões estavam de volta e haviam reiniciado a sua batalha e no centro, uma linha fina e reta, a mesma que Simon vira riscada no chão da aldeia, na companhia do Daimon, o ancião, só que agora, ela brilhava, como se algo sob o solo, de cor vermelha, estivesse piscando tentando escapulir.

O leão negro avançou, cruzando a marca luminosa. O prateado hesitou.

Um grito.

Uma mulher nua e sem rosto, uma criança sem rosto e um velho nu sem rosto no chão - imóveis.

Simon acordou em sobressalto, com muita sede e o corpo encharcado de suor.

O quarto em Orge era uma caixa de concreto quente. Lá fora, a cidade roncava - carros buzinando, motores rugindo, vozes se embebedando em dia.

Jhallen chutou a sua manta, levantou completamente nu. Ao lado da cama possuiu dois objetos. Acendeu o cigarro com o coração batucando. A lâmpada do quarto cintilou como se um espírito demoníaco morasse lá. O homem nunca desligava a luz quando dormisse. Ele encarou a parede rachada esperando respostas.

- Não foi só um sonho. Foi um aviso.

Ele esfregou o rosto com água suja da casa-de-banho, bebeu muita água, vestiu a jaqueta vermelha de abas pretas, tomou o seu carro e saiu.

O Bar Khensa era o tipo de lugar onde o caos ia beber antes de cometer seus pecados.

A polícia com insígnias manchadas de sangue se esfregava contra bruxos de ternos baratos. Motoristas bêbados discutiam com políticos que cheiravam a perfume e podridão. E, é claro, caçadores - homens como Simon.

Quando ele entrou, ninguém falou nada, mas todos notaram.

Ele tinha esse jeito - como se carregasse um demónio indomável no olhar.

- O de sempre? - o barman perguntou, os dedos gordurosos apoiados no balcão manchado.

- Não. Me dá o mais forte que tu tiveres.

O homem sorriu, mostrando dentes amarelos.

- Root então.

O copo chegou. Vermelho-escuro. Espesso como sangue coagulado. Simon bebeu de um gole só. O líquido queimou como ácido descendo pela garganta.

O sonho voltou. Desta vez, mais nítido. Os leões lutavam, mas agora Simon via Lúrdio no meio deles. Parado e firme. Seus olhos, vermelhos como brasas.

E atrás dele, uma mulher sem rosto, a boca aberta em um grito mudo. Crianças a cercavam, chorando, sem olhos, suas faces marcadas por linhas negras como veias apodrecidas.

E a linha, sempre a linha. Uma fronteira entre dois mundos. Simon voltou a si com um soco na mesa.

- A linha é uma porta.

Vozes se calaram. Olhos se viraram. Ele ignorou.

Puxou o caderno surrado e escreveu, a letra quase furando o papel:

"Algo quer passar. Algo quer impedir."

Um bêbado escorou o peso nele, o hálito azedo de uísque.

- Ei, caçador... tá bem?

Simon nem olhou. Sua mente fervia.

- A Ilha Erha. O fracasso - disse para ninguém.

Os corpos secos, olhos vermelhos, vazios como cápsulas de bala. Estava acontecendo de novo. Ele não podia fracassar novamente.

Ele pegou outro cigarro, mas não acendeu. Apenas o rolou entre os dedos, sentindo o tabaco cru sob a pele.

A bebida ainda latejava em suas veias, mas sua mente nunca estivera tão clara.

- Os leões. A linha. A mulher sem rosto. Os olhos vermelhos. Tudo conectado. É isso - descansou o recepiente no balcão com força.

Seu celular vibrou. Mensagem de número desconhecido:

"Outro corpo apareceu. Venha."

Simon sorriu.

- Finalmente.

Ele se levantou, deixou uma moeda suja no balcão e saiu.

Continua...

            
            

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