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Simon Jhallen estava de volta à aldeia, porém tudo estava errado logo que os seus pés pisaram novamente naquela terra. Uma maldição morava ali e o cheiro da morte sem evidências pairava pelos ares poluídos pela tensão constante.
Uma árvore enorme tinha como companhia a noite sem lua e com o som das corujas e lobos. Nenhum homem por perto, nenhuma mulher caminhando e nenhuma criança correndo entre as casas. Nenhum rastro de Daimon e de repente instalou-se por completo a surdez.
Apenas o silêncio e a lua repentinamente espreitou, iluminando o lugar com preguiça.
E aí - eles apareceram.
Dois leões do tamanho da árvore Nungu, a mais enorme da aldeia. Um, prateado como a lâmina de uma faca, outro, negro como carvão banhado de óleo.
O vento começou sem aviso a assoviar. Os lobos e as corujas avisaram e o caos começou.
Eles saltaram um contra o outro, músculos retesados, garras sangrando o vento. Seus rugidos sacudindo a terra. O vento uivava, arrancando palha dos telhados, vergando troncos como se fossem gravetos.
Cada ataque à aldeia o mundo inteiro balançava num terramoto absurdo e nisso Simon Jhallen não conseguia aproximar-se das duas criaturas. Ele estava parado e congelado sentindo as ondas do medo tomando conta do seu corpo. Toda a pele arrepiada e tambores instalados no peito produzindo batidas aceleradas e sufocantes.
- Malditos - Simon disse para ele mesmo com uma voz baixa, mas soou alto, roubando a atenção das duas criaturas que pausaram a batalha por segundos para olhar nos olhos do caçador.
Ele viu quatro esferas quentes e ardentes da cor vermelha pairando como dois demônios famintos por uma alma impura. O homem recuou e de repente no lugar dos dois leões viu um homem ajoelhado de costas para si.
Pela aparência, era um velho. Chorava ali e algumas vezes cavava com as mãos a terra perto da árvore. A sua maneira de cavar era peculiar e assombraria a qualquer indivíduo. De repente a sua pele começou a apodrecer e cheiro pútrido escapou do velho corpo.
Aos poucos o fedor foi ficando mais forte, nojento, horrível, enjoativo. Simon tapou o seu nariz.
- Você está aí, né? Seu maldito caçador? Você está aí, seu maldito? - disse a voz grotesca do velho ajoelhado na árvore, enquanto o seu corpo perdia a carne e um esqueleto se formava.
Era uma junção de vozes grotescas falando em simultâneo, pareceu o que Simon já estava acostumado a enfrentar na sua profissão, quando lidava com almas sequestradas.
As mãos do velho apertaram o pescoço do caçador que viu nenhum rosto, pois era inexistente - nenhum olho, nariz, boca e nem pêlos. Simon lutou por alguns segundos e o velho desapareceu.
Os leões estavam de volta e haviam reiniciado a sua batalha e no centro, uma linha fina e reta, a mesma que Simon vira riscada no chão da aldeia, na companhia do Daimon, o ancião, só que agora, ela brilhava, como se algo sob o solo, de cor vermelha, estivesse piscando tentando escapulir.
O leão negro avançou, cruzando a marca luminosa. O prateado hesitou.
Um grito.
Uma mulher nua e sem rosto, uma criança sem rosto e um velho nu sem rosto no chão - imóveis.
Simon acordou em sobressalto, com muita sede e o corpo encharcado de suor.
O quarto em Orge era uma caixa de concreto quente. Lá fora, a cidade roncava - carros buzinando, motores rugindo, vozes se embebedando em dia.
Jhallen chutou a sua manta, levantou completamente nu. Ao lado da cama possuiu dois objetos. Acendeu o cigarro com o coração batucando. A lâmpada do quarto cintilou como se um espírito demoníaco morasse lá. O homem nunca desligava a luz quando dormisse. Ele encarou a parede rachada esperando respostas.
- Não foi só um sonho. Foi um aviso.
Ele esfregou o rosto com água suja da casa-de-banho, bebeu muita água, vestiu a jaqueta vermelha de abas pretas, tomou o seu carro e saiu.
O Bar Khensa era o tipo de lugar onde o caos ia beber antes de cometer seus pecados.
A polícia com insígnias manchadas de sangue se esfregava contra bruxos de ternos baratos. Motoristas bêbados discutiam com políticos que cheiravam a perfume e podridão. E, é claro, caçadores - homens como Simon.
Quando ele entrou, ninguém falou nada, mas todos notaram.
Ele tinha esse jeito - como se carregasse um demónio indomável no olhar.
- O de sempre? - o barman perguntou, os dedos gordurosos apoiados no balcão manchado.
- Não. Me dá o mais forte que tu tiveres.
O homem sorriu, mostrando dentes amarelos.
- Root então.
O copo chegou. Vermelho-escuro. Espesso como sangue coagulado. Simon bebeu de um gole só. O líquido queimou como ácido descendo pela garganta.
O sonho voltou. Desta vez, mais nítido. Os leões lutavam, mas agora Simon via Lúrdio no meio deles. Parado e firme. Seus olhos, vermelhos como brasas.
E atrás dele, uma mulher sem rosto, a boca aberta em um grito mudo. Crianças a cercavam, chorando, sem olhos, suas faces marcadas por linhas negras como veias apodrecidas.
E a linha, sempre a linha. Uma fronteira entre dois mundos. Simon voltou a si com um soco na mesa.
- A linha é uma porta.
Vozes se calaram. Olhos se viraram. Ele ignorou.
Puxou o caderno surrado e escreveu, a letra quase furando o papel:
"Algo quer passar. Algo quer impedir."
Um bêbado escorou o peso nele, o hálito azedo de uísque.
- Ei, caçador... tá bem?
Simon nem olhou. Sua mente fervia.
- A Ilha Erha. O fracasso - disse para ninguém.
Os corpos secos, olhos vermelhos, vazios como cápsulas de bala. Estava acontecendo de novo. Ele não podia fracassar novamente.
Ele pegou outro cigarro, mas não acendeu. Apenas o rolou entre os dedos, sentindo o tabaco cru sob a pele.
A bebida ainda latejava em suas veias, mas sua mente nunca estivera tão clara.
- Os leões. A linha. A mulher sem rosto. Os olhos vermelhos. Tudo conectado. É isso - descansou o recepiente no balcão com força.
Seu celular vibrou. Mensagem de número desconhecido:
"Outro corpo apareceu. Venha."
Simon sorriu.
- Finalmente.
Ele se levantou, deixou uma moeda suja no balcão e saiu.
Continua...