Capítulo 3 O Lobo

Lúrdio seguiu as pegadas. Os seus olhos não viam os detalhes do ambiente com clareza. As marcas no chão, frescas, avançavam floresta adentro, serpenteando por entre moitas e pedras. A trilha era nítida demais para um animal comum. As fendas cavadas na terra pareciam rasgados por garras maiores que facões.

O silêncio havia se instalado. Nenhum grilo. Nenhuma ave. Somente o baque de seus próprios passos e a respiração tensa que lhe escapava pelas narinas. Lúrdio avançava, os olhos girando vigilantes de qualquer imprevisto.

As pegadas o conduziram até uma casa debilitada. Ali, o ar era frio, denunciando uma presença assombrosa. Entre as árvores retorcidas, ele viu...

O lobo.

Não era um lobo qualquer. A criatura era colossal, do tamanho de um cavalo, com olhos de brasas e dentes de espadas. O pelo, escuro como as trevas, trouxe um arrepio que percorreu o corpo do jovem.

Ao ver Lúrdio, a besta parou. O silêncio entre os dois durou segundos que sequestraram anos.

- Mas que... - sussurrou Lúrdio, o coração tentando rasgar o peito pelas suas pujantes batidas.

O lobo rosnou. O som, uma mistura do sobrenatural e uma nitidez desconfortante.

O animal saltou.

A ação foi rápida, uma sequência frenética. Lúrdio jogou-se para o lado, rolando na terra. A garra do monstro passou a milímetros de sua cabeça, arrancando pedaços de árvore atrás dele. Ele se ergueu cambaleando, sacou a faca curta que não se lembrava de possuir. Era inútil contra aquilo, mas era o que ele tinha.

O lobo virou-se, olhos em chamas. Atacou de novo. Foi nesse momento que uma flecha feriu o ar com um assobio seco. Cravou-se no flanco do lobo.

A criatura gritou, numa aglutinação de som raivoso e de lamento e caiu de lado, contorcendo-se. Lúrdio virou-se e viu Daimon, arco em punho, mais flechas em punho, olhos firmes como um caçador envergando a máxima experiência.

- Afasta-te! - gritou Daimon.

Outra flecha. E outra. O lobo sangrava, mas o sangue não era vermelho. Era escuro e espesso.

- Lúrdio, agora! Para a esquerda!

O jovem correu, jogando-se atrás de um tronco caído. O lobo tentou se levantar, mas as flechas nos flancos o impediram. Gritou mais uma vez, depois fugiu, arrastando a pata traseira, cambaleante, subtraindo o terror.

Daimon correu até Lúrdio, ajudou-o a se erguer. O rosto de Daimon estava suado, tenso, mas a experiência gritava mais, pois o velho vira muitos eventos mais apavorantes que aquele.

- Estás ferido? - perguntou ele, examinando Lúrdio dos pés à cabeça.

- Só... o orgulho. E talvez uma costela - respondeu ele, tentando rir, mas tossindo em seguida.

Daimon assentiu, sem sorrir. Os olhos voltaram-se para o rastro escuro que o lobo deixara na terra. O cheiro podre do sangue enchia o ar, fazendo as narinas queimarem.

- Nunca vi nada assim - disse Lúrdio, ainda com a faca em mãos, tremendo.

- Não é um lobo - retrucou Daimon. - Ou, se já foi, agora é outra coisa.

- O que era então?

- Fora um, mas não mais. Agora, é algo que foi corrompido.

Lúrdio olhou para o ponto onde a criatura desaparecera, as marcas de sua fuga ainda fumegando.

- Por que me seguiste? - perguntou ele, finalmente voltando os olhos para o ancião que estranhamente parecia menos velho.

- Porque tu ias sozinho. E ninguém volta sozinho quando segue um rastro desses.

O silêncio choveu entre os dois, torrencial. A floresta gritou, as árvores soando através dos seus ramos e folhas, um som gutural que se fundia com ritmos de batidas do tambor dos espíritos dançarinos. De súbito, o canto tímido de um pássaro soou ao longe como se tivesse presenciado a pequena luta e aquilo tivesse trazido trauma para o animal.

- Precisamos entender o que é aquilo - disse Daimon, baixando o arco. - E por que apareceu agora.

Lúrdio concordou com um gesto, ainda atordoado. Começaram a caminhar, seguindo o rastro do lobo ferido.

O jovem foi atingido por uma sensação de estar a seguir o infortúnio e preparado para a sua morte e ser a companhia dos mortos que ele próprio enterrou, resultado da sua profissão - o enterrador dos mortos.

Mais para frente, encontraram restos. Um cervo, despedaçado como se tivesse explodido por dentro. As vísceras espalhadas não tinham cor natural. Eram escuras, como o sangue da fera, e fumegavam. No meio da carcaça, sinais de que o lobo tentara algo mais que matar. Havia símbolos desenhados com as vísceras - espirais, linhas quebradas, inscrições excêntricas.

- Isso é ritual. Isso é feitiçaria - murmurou Daimon.

- Mas o lobo é só um animal.

- Era. Agora é uma ferramenta.

- De quem?

Daimon não respondeu. Tirou um pequeno frasco de vidro do bolso do casaco. Dentro, um líquido esverdeado, denso, com partículas douradas boiando. Molhou o dedo e tocou um dos símbolos com o líquido. A carne queimou ao contato, soltando um chiado agudo. O desenho desfez-se, como se nunca tivesse existido.

- Temos pouco tempo - disse ele. - A coisa que o controla vai saber que estivemos aqui.

Lúrdio segurou a faca com mais força.

- E se ela vier atrás de nós?

Daimon sorriu, por fim, mas foi um sorriso torto, cansado, como o de um homem que já perdeu muito.

- Que venha. Já vi coisa pior.

Mas nem ele acreditava nisso.

No topo de uma colina próxima, olhos observavam. Brilhavam em meio ao negrume, mas não era claro se pertenciam a um animal ou a um vão. A sombra espreitava, paciente. E na sua língua murmurava uma palavra só:

"Fantasma."

Os pensamentos do Lúrdio foram invadidos pela mistura de palavras e barulho que ele ouvia de dentro para fora e tudo parecia olhar para ele. As árvores gritavam, animais gritavam, Daimon gritava e se aproximava a cada segundo como uma entidade diabólica. Uma tontura aguda tomou o jovem e também os mortos gritaram - os mortos que ele próprio enterrou.

O barulho era insuportável e ele começou a correr sem destino enquanto isso, em simultâneo tudo ficava numa total escuridão sobrenatural.

Os olhos na colina observavam e observavam quando Lúrdio, de repente, parou, olhou para o topo e viu um enorme sorriso de mil dentes se abrindo como uma introdução da sua partida para o nunca e assim seguindo os homens, esses que deram ao jovem o título de "enterrador dos mortos."

Continua...

            
            

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