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Lúrdio seguiu as pegadas. Os seus olhos não viam os detalhes do ambiente com clareza. As marcas no chão, frescas, avançavam floresta adentro, serpenteando por entre moitas e pedras. A trilha era nítida demais para um animal comum. As fendas cavadas na terra pareciam rasgados por garras maiores que facões.
O silêncio havia se instalado. Nenhum grilo. Nenhuma ave. Somente o baque de seus próprios passos e a respiração tensa que lhe escapava pelas narinas. Lúrdio avançava, os olhos girando vigilantes de qualquer imprevisto.
As pegadas o conduziram até uma casa debilitada. Ali, o ar era frio, denunciando uma presença assombrosa. Entre as árvores retorcidas, ele viu...
O lobo.
Não era um lobo qualquer. A criatura era colossal, do tamanho de um cavalo, com olhos de brasas e dentes de espadas. O pelo, escuro como as trevas, trouxe um arrepio que percorreu o corpo do jovem.
Ao ver Lúrdio, a besta parou. O silêncio entre os dois durou segundos que sequestraram anos.
- Mas que... - sussurrou Lúrdio, o coração tentando rasgar o peito pelas suas pujantes batidas.
O lobo rosnou. O som, uma mistura do sobrenatural e uma nitidez desconfortante.
O animal saltou.
A ação foi rápida, uma sequência frenética. Lúrdio jogou-se para o lado, rolando na terra. A garra do monstro passou a milímetros de sua cabeça, arrancando pedaços de árvore atrás dele. Ele se ergueu cambaleando, sacou a faca curta que não se lembrava de possuir. Era inútil contra aquilo, mas era o que ele tinha.
O lobo virou-se, olhos em chamas. Atacou de novo. Foi nesse momento que uma flecha feriu o ar com um assobio seco. Cravou-se no flanco do lobo.
A criatura gritou, numa aglutinação de som raivoso e de lamento e caiu de lado, contorcendo-se. Lúrdio virou-se e viu Daimon, arco em punho, mais flechas em punho, olhos firmes como um caçador envergando a máxima experiência.
- Afasta-te! - gritou Daimon.
Outra flecha. E outra. O lobo sangrava, mas o sangue não era vermelho. Era escuro e espesso.
- Lúrdio, agora! Para a esquerda!
O jovem correu, jogando-se atrás de um tronco caído. O lobo tentou se levantar, mas as flechas nos flancos o impediram. Gritou mais uma vez, depois fugiu, arrastando a pata traseira, cambaleante, subtraindo o terror.
Daimon correu até Lúrdio, ajudou-o a se erguer. O rosto de Daimon estava suado, tenso, mas a experiência gritava mais, pois o velho vira muitos eventos mais apavorantes que aquele.
- Estás ferido? - perguntou ele, examinando Lúrdio dos pés à cabeça.
- Só... o orgulho. E talvez uma costela - respondeu ele, tentando rir, mas tossindo em seguida.
Daimon assentiu, sem sorrir. Os olhos voltaram-se para o rastro escuro que o lobo deixara na terra. O cheiro podre do sangue enchia o ar, fazendo as narinas queimarem.
- Nunca vi nada assim - disse Lúrdio, ainda com a faca em mãos, tremendo.
- Não é um lobo - retrucou Daimon. - Ou, se já foi, agora é outra coisa.
- O que era então?
- Fora um, mas não mais. Agora, é algo que foi corrompido.
Lúrdio olhou para o ponto onde a criatura desaparecera, as marcas de sua fuga ainda fumegando.
- Por que me seguiste? - perguntou ele, finalmente voltando os olhos para o ancião que estranhamente parecia menos velho.
- Porque tu ias sozinho. E ninguém volta sozinho quando segue um rastro desses.
O silêncio choveu entre os dois, torrencial. A floresta gritou, as árvores soando através dos seus ramos e folhas, um som gutural que se fundia com ritmos de batidas do tambor dos espíritos dançarinos. De súbito, o canto tímido de um pássaro soou ao longe como se tivesse presenciado a pequena luta e aquilo tivesse trazido trauma para o animal.
- Precisamos entender o que é aquilo - disse Daimon, baixando o arco. - E por que apareceu agora.
Lúrdio concordou com um gesto, ainda atordoado. Começaram a caminhar, seguindo o rastro do lobo ferido.
O jovem foi atingido por uma sensação de estar a seguir o infortúnio e preparado para a sua morte e ser a companhia dos mortos que ele próprio enterrou, resultado da sua profissão - o enterrador dos mortos.
Mais para frente, encontraram restos. Um cervo, despedaçado como se tivesse explodido por dentro. As vísceras espalhadas não tinham cor natural. Eram escuras, como o sangue da fera, e fumegavam. No meio da carcaça, sinais de que o lobo tentara algo mais que matar. Havia símbolos desenhados com as vísceras - espirais, linhas quebradas, inscrições excêntricas.
- Isso é ritual. Isso é feitiçaria - murmurou Daimon.
- Mas o lobo é só um animal.
- Era. Agora é uma ferramenta.
- De quem?
Daimon não respondeu. Tirou um pequeno frasco de vidro do bolso do casaco. Dentro, um líquido esverdeado, denso, com partículas douradas boiando. Molhou o dedo e tocou um dos símbolos com o líquido. A carne queimou ao contato, soltando um chiado agudo. O desenho desfez-se, como se nunca tivesse existido.
- Temos pouco tempo - disse ele. - A coisa que o controla vai saber que estivemos aqui.
Lúrdio segurou a faca com mais força.
- E se ela vier atrás de nós?
Daimon sorriu, por fim, mas foi um sorriso torto, cansado, como o de um homem que já perdeu muito.
- Que venha. Já vi coisa pior.
Mas nem ele acreditava nisso.
No topo de uma colina próxima, olhos observavam. Brilhavam em meio ao negrume, mas não era claro se pertenciam a um animal ou a um vão. A sombra espreitava, paciente. E na sua língua murmurava uma palavra só:
"Fantasma."
Os pensamentos do Lúrdio foram invadidos pela mistura de palavras e barulho que ele ouvia de dentro para fora e tudo parecia olhar para ele. As árvores gritavam, animais gritavam, Daimon gritava e se aproximava a cada segundo como uma entidade diabólica. Uma tontura aguda tomou o jovem e também os mortos gritaram - os mortos que ele próprio enterrou.
O barulho era insuportável e ele começou a correr sem destino enquanto isso, em simultâneo tudo ficava numa total escuridão sobrenatural.
Os olhos na colina observavam e observavam quando Lúrdio, de repente, parou, olhou para o topo e viu um enorme sorriso de mil dentes se abrindo como uma introdução da sua partida para o nunca e assim seguindo os homens, esses que deram ao jovem o título de "enterrador dos mortos."
Continua...