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- Pedro Zelufo!!!
O homem com rugas desenhadas pelo tempo antigo no rosto, acordou na gritaria da sua esposa.
- O que foi, Fernanda?!!! Eu disse que precisava de duas noites e manhãs completas para poder sarar as feridas da alma - disse Pedro com uma voz cansada e abatida.
As suas rugas balançavam na pele e os seus olhos apresentavam um vermelho dos mortos.
- Temos uma visita.
A casa do casal idoso era frágil por fora, mas o contrário por dentro, com detalhes que fariam qualquer um pensar nas riquezas de Moamba mesmo do continente - África.
Pedro Zelufo sentou-se lentamente na borda da cama. As suas mãos calejadas tremiam levemente, e o suor frio que lhe nascia no rosto não vinha do calor de Moamba, mas de algo mais profundo - uma inquietação que nascia do nome que ainda gritava no ar: Lúrdio.
O velho sabia quem estavam vindo ao seu lar e também sabia o que precisavam, mas ele não estava pronto para dar a eles esse troféu.
- Fernanda... disseste que temos visita? Quem?
- Um rapaz. Está com os olhos fundos e fala como quem carregou cem corpos dos mortos nos ombros. Disse que precisava falar contigo. Que se não falasse contigo, algo horrível aconteceria - respondeu Fernanda, ajeitando o lenço na cabeça com pressa e saindo em direção à cozinha.
Pedro fechou os olhos e respirou fundo.
- Já não há mais jovens com olhares fundos - pensou. Os fundos agora somos nós. - Ajeitou o casaco velho pendurado na cadeira e saiu para a varanda.
Ali estava Lúrdio, de pé, com os olhos de quem não dormia há dias. Ao lado dele, Sheila, com um rosto pálido e mãos unidas como em oração silenciosa.
- Pedro Zelufo - disse Lúrdio com uma voz grave, mas sem arrogância.
- Pensava que nunca mais veria esses olhos, rapaz. O que te traz à casa dos velhos?
- A mesma coisa que nos mantém presos à terra quando tudo em nós quer voar - respondeu Lúrdio. - Precisamos da tua ajuda.
Pedro desceu os dois degraus da varanda com dificuldade de um bebé. Tocou no ombro de Lúrdio, depois olhou nos olhos de Sheila.
- Senta. As palavras que vocês carregam são pesadas demais pra ficarem em pé.
Sentaram-se os três na varanda. Fernanda trouxe chá com gengibre, mas ninguém tocou. O vento soprava de forma excêntrica, vindo de dentro da terra.
- Eles estão nos prendendo, Pedro. A aldeia... os anciãos. Há algo mais. Algo que se move por baixo, que se alimenta da nossa dor - disse Sheila, firme.
Pedro olhou para o céu, que naquele instante tinha uma cor cinza doente. A sua voz, quando veio, era quase um murmúrio:
- Há muito tempo, antes de vocês nascerem, algo foi enterrado aqui. Não um corpo. Uma contrato.
Lúrdio apertou os punhos.
- Sabíamos que havia algo. O que foi enterrado?
- A aldeia... não nasceu como qualquer outra. Ela foi comprada.
- Comprada? - perguntou Sheila, confusa.
- Sim. Comprada por proteção. Os primeiros anciãos fizeram um pacto com uma entidade que não pode ser nomeada. Em troca de paz, fecundidade e colheita, deram suas linhagens. E com o tempo, tudo que é nascido aqui pertence a esse poder.
Lúrdio quase se levantou, mas Pedro o segurou.
- Foi por isso que nunca conseguimos sair? - perguntou ele. - Por isso os nossos filhos morreram?
- Vocês são frutos de uma terra que exige raízes. E quem tenta cortar... paga caro.
- E não há forma de quebrar isso?
Pedro calou-se por um momento. Depois falou:
- Há um homem. Vive além da mata vermelha. Os antigos o chamavam de Nkunzi Xiviri. "O que vê com olhos enterrados". Ele foi o único que recusou o pacto. Fugiu antes da primeira colheita. Dizem que só ele sabe como quebrar o laço.
Sheila olhou para Lúrdio. Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Ambos não acreditavam no que estavam ouvindo, pois achavam que já haviam alcançado o homem que traria a sua salvação. Percorreram terras e terras, cruzando cemitérios e cemitério e feiticeiros e feiticeiros para acharem a chave para desligar o caos crescente.
- Amanhã iremos até ele - disse Lúrdio com firmeza.
Pedro assentiu, mas os olhos estavam sombrios.
- Não vão sozinhos. Levem isso - e retirou de dentro de um baú pequeno um objeto escondido em panos cinzentos.
Desfez as dobras com reverência. Era um osso pequeno, polido, com palavras e marcas queimadas.
- É o osso de um infante da primeira linhagem. O último a morrer antes da ruptura da lua. Ele é o que chamamos de "chave". Guardem. Mas nunca o mostrem ao Nkunzi... a menos que ele peça.
Sheila tocou no osso e recuou de imediato, sentido um choque.
- Ele é... - disse ela, assustada.
- Porque está ativo. O pacto ainda não foi quebrado.
Lúrdio pegou o osso e guardou cuidadosamente dentro de uma bolsa de couro presa ao corpo. Em seguida levantou-se. Sheila fez o mesmo.
- Obrigado, Pedro. Tu e Fernanda serão sempre lembrados - disse Lúrdio.
Pedro riu, mas sem humor.
- Lembra de nós apenas se conseguires sair. Só isso. Porque se não saíres... não vais lembrar de nada. Porque já não serás tu.
Ao voltarem para casa, o céu já escurecia mesmo sendo ainda tarde. Havia um silêncio ensurdecedor.
À noite, enquanto Sheila arrumava as malas e deixava as roupas dos filhos separadas, Lúrdio olhava pela janela.
- Ainda vamos sair, Sheila?
Ela o olhou com ternura.
- Mesmo que este lugar nos enterre vivos, vamos sair. Nem que seja em espírito.
Ambos beijaram-se numa mistura da incerteza e fé e paixão.
E enquanto dormiam, o vento ao redor da casa assobiava nomes... nomes que só os mortos ousariam pronunciar.
- Lúrdio!!! - uma voz gritou.
Continua...