Capítulo 4 As Perdas

- Lúrdio!? Meu bem!?

Em sobressalto Lúrdio acordou e diante de si viu a mulher da sua vida de olhos castanho-claros que faziam um belo contraste com a sua pele escura.

- Que susto, Sheila!

- Quem assustou-se fui eu, porque chamei por muito tempo sem a sua resposta.

Lúrdio ficou em silêncio sentindo o leve vento soprando e fazendo as folhas de Nungu caírem, convidando um som contínuo e aconchegante.

- Mais um pesadelo, né?

- Sim.

- São sinais?

Nada disse Lúrdio. Sheila abraçou o seu amado com força e no seu ouvido disse:

- Ainda há esperança de sairmos daqui.

O casal saiu e foi até a casa. Diferente de outros aldeões a casa do casal era mais elaborada e estava longe da aparência de uma cabana. Tratava-se de uma casa como uma da cidade, com detalhes que invocavam muitos sentimentos que humanos não mereciam exalar e absorver por conta da sua força destrutiva, sendo um deles a inveja.

Sentaram ambos na mesa no momento que as crianças estava na escola. Tinham três, uma menina e dois meninos. Estavam livres para conversar e mais coisas que desejassem.

- Estás muito calmo. O que houve? - perguntou Sheila ao seu marido trazendo a mesa uma bandeja com ingredientes que fariam a composição do pequeno almoço.

- Bem, eu acho que há algo que os anciãos não querem nos contar.

- Porquê? - disse Sheila organizando a mesa e em seguida foi levar a água para o seu marido lavar as mãos.

- Porque mais uma vez decidiram e fizeram escolhas sem o nosso conhecimento.

- Não foi sempre assim?

- Você sabe que não, She - Lúrdio lavou as mãos e limpou com um pano branco em seguida.

- Na verdade sei. Acho que não precisamos nos meter nessa guerra.

- Eu penso que seria muito bom entendermos isso. Ainda fazemos parte daqui. Sei que temos que partir, mas não estaríamos seguros sem o entendimento deste lugar.

- Você nunca percebeu que na verdade sempre há algo oculto por aqui?

- Na verdade sim e por isso que começamos com o nosso investimento para sairmos daqui. O trabalho de enterrar os mortos está dando muitos mambas, mas também ao mesmo tempo está trazendo muitos problemas.

- Está ver? Por isso que eu digo que temos que sair antes que seja tarde. Já teríamos seis filhos como desejamos, mas infelizmente há barreiras vindo...

- Vamos conseguir. Vem cá - disse Lúrdio levantado-se e dando espaço para a sua esposa.

Ele abraçou a ela e ficou por algum tempo sentido o calor dela. Lúrdio não queria se desconectar daquele abraço. Era como se os braços de Sheila fossem a única âncora contra o oceano negro da aldeia, aquele mesmo mar de feitiços e olhos que pesavam que os ossos de todos os mortos que Lúrdio enterrou. A respiração dela era uma anestesia, e o peito dele, um relógio cansado, mas ainda com um pingo de sentido para frente.

- Às vezes penso que não fomos feitos para esta terra, Sheila - sussurrou ele. - Como se cada árvore, cada vizinho, cada vulto estivesse contra nós.

Ela não respondeu de imediato. Segurou-lhe a nuca com carinho e olhou-o nos olhos como se quisesse apagar toda a dor que ele carregava nas pupilas. Mas não podia. Porque também carregava as suas.

Já tinham enfrentado muito. Foram acusados de feitiçaria quando começaram a prosperar, quando a casa deles começou a se erguer em cimento e janelas de vidro. Foram olhados com desdém cada vez que compravam mais um móvel ou que cozinhavam algo que cheirava "forasteiro demais".

Uma vez, os galos de Dona Afraka numa manhã foram encontrados mortos, e imediatamente apontaram para Lúrdio. Outra vez, quando as chuvas falharam três estações seguidas, disseram que era o chão amaldiçoado que Sheila pisava. Ela chorou tanto naquela noite que Lúrdio teve que buscar lenha no meio da madrugada, apenas para distraí-la com um fogo.

Mas foi o primeiro aborto que mudou tudo. Sheila já estava no sexto mês quando a dor veio como um trovão. Correram, desesperados, para a única curandeira que ainda aceitava recebê-los. Não adiantou. O bebê já estava morto.

- Foi obra feita - disse a curandeira, encharcando folhas em óleo quente misturado com sangue. - Inveja e raiva.

O segundo aborto veio dois anos depois, sem explicação. E o terceiro, esse foi o mais cruel. A criatura nasceu. Mas o que saiu de Sheila não era uma criança.

- Era coberta de pelos, com dentes já formados e olhos que... que não eram olhos humanos - alterada disse Sheila certa noite, quando Lúrdio a encontrou sentada sozinha no chão da cozinha, olhando para o nada. - Parecia um cão, ou um lobo... mas com a minha boca. Com o meu queixo.

Ela gritou tanto no parto que os cães da aldeia fugiram e os corvos pousaram sobre a casa como se a morte ali tivesse deixado um trono.

Enterraram o pequeno corpo atrás da casa, onde nenhum vizinho ousaria pisar. Desde então, o vento ali sopra de um jeito estranho, como se pronunciasse nomes.

- Continuamos porque somos teimosos, não é? - perguntou Sheila, afastando-se do abraço para servir o pequeno-almoço.

- Não. Continuamos porque nos temos. Se eu estivesse sozinho... eu teria morrido há muito tempo.

Sheila sorriu triste e cortou o pão com mãos firmes.

- E mesmo assim, o nosso plano de ir embora nunca se concretiza. Sempre aparece algo.

Lúrdio assentiu. Já tinham o dinheiro. Já tinham os documentos. Já tinham até visto uma casa para alugar na cidade de Orge. Mas uma semana antes da partida, o carro que os levaria quebrou misteriosamente. Depois, a filha adoeceu. Depois, choveu tanto que a ponte caiu. E sempre, sempre, havia uma nova desculpa, um novo entrave.

- Tenho medo que a aldeia nos queira eternos aqui, She. Como se fôssemos suas raízes.

- Mas raízes podem ser cortadas - disse ela, num tom seco e determinado.

O silêncio entre eles foi interrompido apenas pelo som das folhas de Nungu que continuavam a cair do lado de fora, cada uma como uma sentença.

- E se pedíssemos ajuda a alguém de fora? - perguntou Sheila, por fim.

- Alguém de fora?

- Um homem, ouvi falar dele. Vive além da mata vermelha, dizem que tem olhos de vidro e vê o que ninguém quer ver.

Lúrdio já ouvira falar do mesmo homem. Diziam que ele fora um dos grandes feiticeiros de antigamente, mas agora vivia isolado, temido até pelos próprios demônios.

- Acha que é seguro?

- Nada aqui é seguro. Mas se for ele quem vai quebrar o ciclo, então que seja ele.

- E os anciãos?

- Que fiquem com os seus segredos. Já perdemos demais por respeitar silêncios.

O casal ficou em silêncio por mais um tempo, comendo devagar. O pão parecia mais seco que o habitual. A água tinha gosto de ferro.

- Iremos vê-lo amanhã - disse Lúrdio. - Vamos dizer às crianças que será uma pequena viagem.

- Uma última tentativa.

- Uma nova esperança.

Continua...

            
            

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