Passei os dias seguintes numa névoa de ansiedade.
Os meus pais evitavam o assunto. Sempre que eu perguntava sobre a Inês, eles davam respostas vagas.
"É uma amiga da família, está muito doente."
"Não te preocupes com isso, foca-te em preparar-te para a cirurgia."
A desculpa deles era fraca, e eles sabiam disso.
A cirurgia estava marcada para dali a dois dias. A minha angústia crescia a cada hora.
Decidi que precisava de respostas.
À noite, quando o hospital estava mais calmo, fui ao arquivo de registos médicos.
A minha empresa tinha feito um projeto de sistema para este hospital há uns anos. Eu ainda tinha acesso a algumas áreas não críticas.
Usei as minhas credenciais antigas. Funcionou.
Procurei pelo nome "Inês Santos".
O seu ficheiro apareceu.
Diagnóstico: Leucemia Mieloide Aguda. O mesmo que o Leo.
Necessidade: Transplante de medula óssea urgente.
Mas foi a secção de informações pessoais que me fez parar de respirar.
Nome da mãe: Clara Alves.
Nome do pai: Rui Gomes.
Os nomes dos meus pais.
A Inês era a irmã deles. A minha tia. Uma tia que eu nunca soube que existia.
E depois vi outra coisa.
Um documento anexado. Um teste de compatibilidade.
O nome do dador: Leonardo Gomes. O meu irmão.
Compatibilidade: 100%.
O chão pareceu desaparecer debaixo dos meus pés.
O Leo não era o recetor. Ele era o dador.
Eles mentiram.
Todos eles mentiram.
A doença do Leo era a desculpa. A desculpa para me fazerem vir e doar a minha medula óssea.
Mas para quem? Se o Leo era o dador para a Inês, então para quem era a minha doação?
Percorri os registos do Leo.
O seu diagnóstico não era leucemia. Era uma anemia aplástica severa. Grave, mas não uma sentença de morte imediata como a leucemia aguda.
E depois, o choque final.
No seu ficheiro, havia um pedido pendente para um transplante de medula óssea.
O recetor: Leonardo Gomes.
A dadora designada: Eva Gomes. Eu.
Eles queriam a minha medula para o Leo.
E a medula do Leo para a Inês.
Um transplante em cadeia. Uma teia de mentiras tão complexa, tão cruel, que me deixou sem ar.
Eles sacrificaram a saúde do Leo, pondo-o no risco de uma doação, para salvar a irmã deles. E usaram a sua doença para me coagir a salvar o Leo.
Senti uma náusea violenta.
Fechei o computador e saí do arquivo, a tremer incontrolavelmente.
No corredor, dei de caras com o Miguel. Ele devia ter-me seguido.
Ele olhou para o meu rosto e soube imediatamente.
"Descobriste, não foi?"
A sua voz era suave, cheia de uma tristeza que eu não compreendi.
Eu olhei para ele, os olhos a arder com lágrimas não choradas.
"Tu sabias? Miguel, tu sabias disto tudo?"
Ele não conseguiu encontrar o meu olhar. Baixou a cabeça.
"Eva, eu..."
O seu silêncio foi a única resposta de que eu precisava.
A traição era total.