A minha irmã, Laura, sempre foi frágil, tanto de corpo como de espírito. As palavras duras do meu tio fizeram-na começar a chorar.
"Tio, a culpa não é da Ana. Eu é que preciso de cuidados, eu..."
A voz dela era fraca e trémula.
O meu tio interrompeu-a bruscamente.
"Tu? A única coisa que fazes é dar problemas! Se não fosses tu e a tua doença, a Ana não estaria a criar este escândalo todo. O Pedro tem sido um santo, a aturar-vos às duas! E é assim que vocês lhe pagam?"
Senti o sangue a ferver.
Tirei o telemóvel da mão da Laura.
"Tio Tiago, a minha irmã acabou de sair de uma cirurgia de transplante. O que o senhor quer exatamente?"
A minha voz era gelada.
Houve um silêncio do outro lado da linha, depois a voz dele voltou, ainda mais irritada.
"Ana? Então és tu. Ótimo. O que se passa contigo? O Pedro salva a tua prima de um incêndio e tu queres o divórcio? Onde está a tua gratidão? A tua mãe não te ensinou a ter bom senso?"
"A minha mãe ensinou-me a não ser um capacho para ninguém," respondi, com a voz firme. "E o Pedro não salvou a Sofia 'a caminho'. Ele escolheu ir para lá. Ele escolheu ignorar-nos."
"Que disparate! Ele é bombeiro, é o dever dele!"
"O dever dele era estar aqui, comigo e com a irmã dele, que estava a receber um órgão meu! Ou isso não conta como uma emergência para si?"
"Tu és inacreditável! Estás a comparar a tua cirurgia planeada com um incêndio imprevisível? A Sofia podia ter morrido!"
"E a Laura? Acha que um transplante de rim é um passeio no parque? Ela podia ter morrido à espera deste rim!"
A minha paciência esgotou-se.
"Escute, Tio. O meu casamento com o Pedro é um assunto nosso. Não se meta."
"Como te atreves a falar assim comigo? Eu sou o teu tio! Sou o chefe desta família!"
"O senhor não é chefe de nada na minha vida. Adeus."
Desliguei o telefone e atirei-o para a cama.
A Laura olhava para mim, com os olhos arregalados e cheios de lágrimas.
"Ana, o que fizeste? O tio vai ficar furioso."
"Deixa-o ficar," disse eu, sentindo uma calma estranha apossar-se de mim. "Já não me importa."
"Mas... e o Pedro? Tu amas o Pedro."
Olhei para a minha irmã. O rosto dela estava pálido, os lábios tremiam. Ela parecia tão pequena e indefesa.
"Eu amava, Laura. Mas o amor não pode ser uma via de sentido único."
Sentei-me na beira da sua cama, com cuidado para não tocar nos tubos.
"Ouve, tu agora tens um rim novo. O meu rim. Vais ficar boa e forte. Nós as duas vamos ficar bem. Sozinhas."
Ela abanou a cabeça. "Não, Ana. Eu sou um fardo. Foi por minha causa que..."
"Não," interrompi-a, com mais firmeza do que pretendia. "Nunca mais digas isso. Tu não és um fardo. Tu és a minha irmã."
Peguei na mão dela. Estava fria.
"Nós vamos ultrapassar isto. Juntas."
Naquela noite, não consegui dormir. A dor da cirurgia era constante, mas a dor no meu peito era pior. Cada vez que fechava os olhos, via o rosto do Pedro, não o rosto preocupado que eu conhecia, mas um rosto zangado e distante.
Lembrei-me do dia em que nos casámos. Ele prometeu cuidar de mim, na saúde e na doença. Uma promessa vazia, como tantas outras.
O incêndio, a Sofia, o gato... tudo isso foram apenas desculpas. A verdade era que, quando precisei dele, ele não estava lá. E essa era uma verdade que eu não podia mais ignorar.