Renascer das Cinzas: Sem Rim, Com Coração
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Capítulo 1

Quando o meu transplante de rim terminou, o céu lá fora já estava escuro. O médico disse que a cirurgia tinha sido um sucesso, mas eu não sentia qualquer alívio.

O meu corpo estava pesado, e a anestesia ainda me deixava grogue.

Ao meu lado, na cama de hospital, estava a minha irmã gémea, Sofia. Ela parecia pálida, mas os seus olhos brilhavam de excitação.

O meu marido, Lucas, segurava a mão dela com força.

"Querida, foste tão corajosa", disse ele a Sofia, com a voz cheia de uma ternura que eu nunca tinha ouvido.

Eu tentei sentar-me, mas uma dor aguda atravessou o meu abdómen.

"Não te mexas, Clara", disse Lucas, sem sequer olhar para mim. "O médico disse que precisas de descansar."

A sua atenção voltou-se imediatamente para a Sofia. "Tens fome? Queres que te traga alguma coisa para comer?"

Sofia sorriu fracamente. "Não te preocupes, amor. A mãe e o pai já foram comprar-me canja."

Amor. Ela chamou-lhe amor.

Eu olhei para eles, para as suas mãos entrelaçadas. De repente, a razão pela qual Lucas insistiu tanto para que eu doasse o meu rim a Sofia tornou-se dolorosamente clara.

Não era por preocupação familiar. Era por ela.

"Lucas", chamei, a minha voz rouca. "Podemos falar?"

Ele finalmente olhou para mim, a sua expressão era de pura impaciência. "Falar sobre o quê? A Sofia acabou de passar por uma cirurgia delicada. Não podes esperar?"

"Não, não posso", insisti. "É importante."

A minha mãe e o meu pai entraram nesse momento, trazendo um recipiente térmico. A minha mãe correu para o lado da Sofia, ignorando-me completamente.

"Minha querida, como te sentes? Trouxemos a tua canja de galinha preferida."

O meu pai, por outro lado, caminhou até mim. O seu rosto estava sério.

"Clara, o que é que estás a fazer? A tua irmã precisa de paz e sossego. Qualquer que seja o teu problema, pode esperar."

Senti um nó na garganta. "Eu só queria falar com o meu marido."

"Eu sou o teu marido, mas também sou o noivo da Sofia", disse Lucas, sem rodeios. "Agora, a prioridade é ela."

Aquelas palavras atingiram-me com a força de um soco. Noivo.

Então, era verdade. O anel de noivado que eu tinha visto na mala da Sofia na semana passada não era uma alucinação.

Eu ri, um som seco e amargo. "Noivo? Então, o que sou eu, Lucas? A tua doadora de órgãos de reserva?"

A sua cara endureceu. "Não sejas dramática. Sabias que a tua irmã precisava disto. Era o teu dever como família."

"O meu dever?", repeti, incrédula. "O meu dever era dar o meu rim para que pudesses casar com a minha irmã?"

O silêncio no quarto era pesado. A minha mãe olhou para mim com desaprovação.

"Clara, para com isso! Estás a perturbar a tua irmã. Devias estar feliz por ela estar bem."

Feliz. Eles queriam que eu estivesse feliz.

Eu olhei para a minha barriga, para a cicatriz fresca escondida sob o lençol do hospital. Eu tinha-lhes dado uma parte de mim. E em troca, eles tinham-me tirado tudo.

"Acabou", disse eu, a minha voz a ganhar força. "Quero o divórcio, Lucas."

Lucas bufou. "Divórcio? Não sejas ridícula. Depois de tudo o que fiz por ti e pela tua família?"

"O que fizeste por mim?", questionei. "Mentiste-me. Enganaste-me. Usaste-me."

"Eu dei-te uma vida confortável!", gritou ele. "Paguei as dívidas do teu pai! O que mais querias?"

"Eu queria um marido", respondi, as lágrimas a quererem sair, mas eu forcei-as a recuar. "Não um benfeitor que me comprou o rim."

"És ingrata!", gritou a minha mãe. "A Sofia podia ter morrido! E tu só pensas em ti!"

"Ela podia ter esperado por um dador compatível", argumentei. "Não precisava do meu. Vocês pressionaram-me, disseram que era uma questão de vida ou de morte."

"E era!", defendeu o meu pai.

"Não, não era. O médico disse que ela podia fazer diálise. Mas vocês não queriam esperar, pois não? Porque isso teria adiado o casamento."

O choque nos seus rostos confirmou as minhas suspeitas.

Lucas recuperou a compostura primeiro. "Chega. Estás a delirar por causa dos medicamentos. Vamos falar sobre isto quando estiveres mais calma."

Ele virou-se e saiu do quarto, sem me dirigir mais um olhar.

O meu pai seguiu-o. "Lucas, espera!"

A minha mãe ficou, olhando para mim com um misto de raiva e pena. "Vê o que fizeste? Arruinaste tudo."

Depois, ela também se virou e foi consolar a sua filha preferida, a que agora tinha o meu rim.

Fiquei sozinha no silêncio do quarto, com a dor física a misturar-se com uma dor emocional ainda maior.

Peguei no meu telemóvel. A minha mão tremia. Abri a galeria e olhei para a última foto que tirei com o Lucas. Estávamos a sorrir. Parecíamos felizes.

Era tudo uma mentira.

Com o dedo a tremer, apaguei a foto. Depois apaguei todas as outras.

Ele tinha razão numa coisa. Eu não estava a delirar. Pelo contrário, nunca tinha visto as coisas com tanta clareza.

O casamento tinha acabado. A minha família, tal como a conhecia, também.

            
            

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