"Não te mexas, Clara", disse Lucas, sem sequer olhar para mim. "O médico disse que precisas de descansar."
A sua atenção voltou-se imediatamente para a Sofia. "Tens fome? Queres que te traga alguma coisa para comer?"
Sofia sorriu fracamente. "Não te preocupes, amor. A mãe e o pai já foram comprar-me canja."
Amor. Ela chamou-lhe amor.
Eu olhei para eles, para as suas mãos entrelaçadas. De repente, a razão pela qual Lucas insistiu tanto para que eu doasse o meu rim a Sofia tornou-se dolorosamente clara.
Não era por preocupação familiar. Era por ela.
"Lucas", chamei, a minha voz rouca. "Podemos falar?"
Ele finalmente olhou para mim, a sua expressão era de pura impaciência. "Falar sobre o quê? A Sofia acabou de passar por uma cirurgia delicada. Não podes esperar?"
"Não, não posso", insisti. "É importante."
A minha mãe e o meu pai entraram nesse momento, trazendo um recipiente térmico. A minha mãe correu para o lado da Sofia, ignorando-me completamente.
"Minha querida, como te sentes? Trouxemos a tua canja de galinha preferida."
O meu pai, por outro lado, caminhou até mim. O seu rosto estava sério.
"Clara, o que é que estás a fazer? A tua irmã precisa de paz e sossego. Qualquer que seja o teu problema, pode esperar."
Senti um nó na garganta. "Eu só queria falar com o meu marido."
"Eu sou o teu marido, mas também sou o noivo da Sofia", disse Lucas, sem rodeios. "Agora, a prioridade é ela."
Aquelas palavras atingiram-me com a força de um soco. Noivo.
Então, era verdade. O anel de noivado que eu tinha visto na mala da Sofia na semana passada não era uma alucinação.
Eu ri, um som seco e amargo. "Noivo? Então, o que sou eu, Lucas? A tua doadora de órgãos de reserva?"
A sua cara endureceu. "Não sejas dramática. Sabias que a tua irmã precisava disto. Era o teu dever como família."
"O meu dever?", repeti, incrédula. "O meu dever era dar o meu rim para que pudesses casar com a minha irmã?"
O silêncio no quarto era pesado. A minha mãe olhou para mim com desaprovação.
"Clara, para com isso! Estás a perturbar a tua irmã. Devias estar feliz por ela estar bem."
Feliz. Eles queriam que eu estivesse feliz.
Eu olhei para a minha barriga, para a cicatriz fresca escondida sob o lençol do hospital. Eu tinha-lhes dado uma parte de mim. E em troca, eles tinham-me tirado tudo.
"Acabou", disse eu, a minha voz a ganhar força. "Quero o divórcio, Lucas."
Lucas bufou. "Divórcio? Não sejas ridícula. Depois de tudo o que fiz por ti e pela tua família?"
"O que fizeste por mim?", questionei. "Mentiste-me. Enganaste-me. Usaste-me."
"Eu dei-te uma vida confortável!", gritou ele. "Paguei as dívidas do teu pai! O que mais querias?"
"Eu queria um marido", respondi, as lágrimas a quererem sair, mas eu forcei-as a recuar. "Não um benfeitor que me comprou o rim."
"És ingrata!", gritou a minha mãe. "A Sofia podia ter morrido! E tu só pensas em ti!"
"Ela podia ter esperado por um dador compatível", argumentei. "Não precisava do meu. Vocês pressionaram-me, disseram que era uma questão de vida ou de morte."
"E era!", defendeu o meu pai.
"Não, não era. O médico disse que ela podia fazer diálise. Mas vocês não queriam esperar, pois não? Porque isso teria adiado o casamento."
O choque nos seus rostos confirmou as minhas suspeitas.
Lucas recuperou a compostura primeiro. "Chega. Estás a delirar por causa dos medicamentos. Vamos falar sobre isto quando estiveres mais calma."
Ele virou-se e saiu do quarto, sem me dirigir mais um olhar.
O meu pai seguiu-o. "Lucas, espera!"
A minha mãe ficou, olhando para mim com um misto de raiva e pena. "Vê o que fizeste? Arruinaste tudo."
Depois, ela também se virou e foi consolar a sua filha preferida, a que agora tinha o meu rim.
Fiquei sozinha no silêncio do quarto, com a dor física a misturar-se com uma dor emocional ainda maior.
Peguei no meu telemóvel. A minha mão tremia. Abri a galeria e olhei para a última foto que tirei com o Lucas. Estávamos a sorrir. Parecíamos felizes.
Era tudo uma mentira.
Com o dedo a tremer, apaguei a foto. Depois apaguei todas as outras.
Ele tinha razão numa coisa. Eu não estava a delirar. Pelo contrário, nunca tinha visto as coisas com tanta clareza.
O casamento tinha acabado. A minha família, tal como a conhecia, também.