A expressão do Miguel mudou. A raiva deu lugar a uma incredulidade fria.
"Tu não te atreverias."
"Já me atrevi", respondi, apontando para os sacos. "Pega nas tuas coisas e sai."
Ele ficou parado por um momento, a processar as minhas palavras. Depois, um sorriso lento e cruel espalhou-se pelo seu rosto.
"Tudo bem. Se é assim que queres."
Ele não pegou nos sacos. Em vez disso, foi até à estante da sala, onde guardávamos os nossos álbuns de fotos.
Ele pegou no nosso álbum de casamento.
"Lembraste-te disto, Ana? O dia mais feliz da tua vida."
Ele abriu o álbum e começou a rasgar as fotografias, uma por uma. Rasgava-as devagar, a olhar para mim, a saborear a minha reação.
Eu fiquei sentada, imóvel. Não lhe daria essa satisfação.
O meu silêncio pareceu enfurecê-lo ainda mais. Ele atirou o álbum destruído para o chão e foi até à cozinha.
Ouvi o som de pratos a partirem-se. Um, dois, três. O serviço de loiça que a minha mãe me tinha dado.
Eu não me mexi.
Ele voltou para a sala, o peito a subir e a descer.
"Não te importas? Com nada disto?"
"Importo-me com o meu pai e com o meu filho", disse eu, a voz firme. "O resto são apenas coisas."
Ele olhou para mim, derrotado. A violência não tinha funcionado. As ameaças não tinham funcionado.
"Vais arrepender-te disto", disse ele, a voz baixa e cheia de veneno.
"Talvez", respondi. "Mas esta noite, vou dormir em paz."
Ele finalmente pegou nos sacos. A porta bateu com força quando ele saiu.
O silêncio que se seguiu foi absoluto.
Levantei-me e fui até à cozinha. Os cacos de porcelana cobriam o chão. Com cuidado, comecei a apanhá-los.
O meu pai apareceu à porta da cozinha, o rosto preocupado.
"Ouvi barulho. Estás bem?"
"Estou bem, pai. O Miguel foi-se embora."
Ele olhou para a destruição à nossa volta e depois para mim. Não disse nada, apenas me abraçou.
Foi um abraço desajeitado, por causa da minha barriga, mas foi o abraço de que eu precisava.
Naquela noite, dormi no quarto de hóspedes. Pela primeira vez em meses, dormi profundamente, sem pesadelos.