Tirei o cateter, vesti as minhas roupas e saí do hospital como um fantasma.
O mundo lá fora parecia cinzento e desfocado.
A minha sogra, a Dona Helena, ligou-me assim que cheguei a casa. A sua voz era cortante.
"Sofia! O que é que fizeste para perturbar o Pedro? Ele está uma pilha de nervos!"
Respirei fundo, tentando manter a calma.
"Ele cancelou a cirurgia. Ele vai dar o rim dele à Clara."
Houve uma pausa.
"E então? A Clara é a irmã dele, o sangue dele! A vida dela está em perigo. Tu podes esperar. Podes fazer diálise."
"Eu não posso 'esperar' para sempre, Dona Helena. O médico disse que preciso do transplante urgentemente."
"Não sejas egoísta! A família vem sempre em primeiro lugar. Devias apoiar o teu marido nesta decisão difícil, não causar mais problemas. És a mulher dele, age como tal!"
Ela desligou-me o telefone na cara.
A mulher dele.
As palavras soaram ocas. Eu era a mulher dele na saúde, mas na doença, eu era um obstáculo.
Olhei para o nosso apartamento, para as fotografias na parede. Nós a sorrir na nossa lua de mel, a celebrar o nosso aniversário.
Tudo parecia uma mentira.
O Pedro chegou a casa tarde nessa noite. Ele parecia cansado, mas não havia culpa nos seus olhos.
"Sofia, eu sei que estás chateada."
"Chateada?", a minha voz saiu como um sussurro rouco. "Tu deixaste-me na mesa de operações, Pedro. Tu prometeste."
"A Clara quase morreu! O que é que tu querias que eu fizesse? Deixasse a minha irmã morrer?"
Ele andava de um lado para o outro na sala, a sua agitação a encher o espaço.
"Os médicos disseram que os rins dela foram esmagados no acidente. Ela precisa de um transplante imediatamente. Eu sou o único compatível na família. Foi o destino."
Destino.
Ele chamou-lhe destino.
"E o nosso destino, Pedro? A tua promessa para mim?"
Ele parou e olhou para mim, a sua expressão a endurecer.
"Tu podes fazer diálise. A Clara não. É simples. Não tornes isto mais difícil do que já é."
Naquele momento, eu vi-o claramente pela primeira vez.
O homem que eu amava não existia. No seu lugar estava um estranho que pesava a minha vida contra a da irmã e me considerava um peso menor.
"Eu quero o divórcio", disse eu, a decisão a solidificar-se dentro de mim.
Ele riu, um som amargo e incrédulo.
"Divórcio? Não sejas ridícula. Estás doente, precisas de mim. Quem é que vai cuidar de ti?"
"Eu prefiro morrer sozinha a viver com um mentiroso."
A sua cara contorceu-se de raiva.
"Estás a ser melodramática. Quando a Clara estiver melhor, vamos encontrar outro dador para ti. Agora para com este disparate."
Ele virou-se e foi para o quarto, fechando a porta atrás de si.
Deixando-me sozinha na sala, com o eco das suas palavras e a certeza esmagadora de que eu estava completamente sozinha.