Na manhã seguinte, a casa estava fria.
O bolo do foguetão azul continuava na mesa, uma lembrança cruel.
Pedro não tinha voltado para casa.
Não me surpreendeu.
Juntei as minhas coisas numa mala pequena. Roupas, alguns documentos, a única fotografia que tinha do Tiago no meu porta-moedas.
Não havia muito para levar. A minha vida nos últimos quatro anos cabia numa única mala.
Quando estava a sair, o meu telemóvel tocou. Era um número desconhecido.
Atendi.
"Dona Helena? Sou o Inspetor Silva, da polícia."
A sua voz era calma e profissional.
"Sim?"
"Lamento a sua perda. Estamos a investigar as circunstâncias da morte do seu filho. Precisávamos de lhe fazer algumas perguntas."
"Claro. Onde?"
"Pode vir à esquadra? Ou prefere que vamos até si?"
"Eu vou aí. É melhor."
Não queria a polícia nesta casa. Não com o bolo na mesa e o cheiro a desinfetante do hospital ainda no ar.
Desliguei e saí, fechando a porta atrás de mim.
Na esquadra, o Inspetor Silva levou-me para uma sala pequena e sem janelas. Havia uma mesa e duas cadeiras.
Ele era um homem de meia-idade, com um olhar cansado, mas atento.
"Dona Helena, pode contar-me o que aconteceu ontem?"
Respirei fundo e contei tudo. A febre, as chamadas não atendidas, a ida para o hospital, a notícia.
A minha voz era monótona, sem emoção. Eu estava a relatar factos.
"Vinte e sete chamadas, disse a senhora?"
"Sim. Rejeitadas. Todas elas."
Ele anotou algo no seu caderno.
"E o seu marido, o senhor Pedro, disse que estava com a sobrinha?"
"Sim. Sofia. Ela estava a ter uma crise de pânico."
"E onde estavam eles?"
"No hospital. Pelo menos foi o que ele disse."
O inspetor olhou para mim.
"Verificámos os registos do Hospital da Luz, onde a sobrinha do seu marido deu entrada. A hora de entrada foi às sete da noite. A senhora começou a ligar ao seu marido por volta das seis e meia, correto?"
Assenti com a cabeça.
"O hospital fica a dez minutos da sua casa, sem trânsito."
Ele fez uma pausa, deixando a informação assentar.
"O seu marido demorou quase trinta minutos para chegar lá com a sobrinha. E durante esse tempo, não atendeu as suas chamadas."
"Ele estava a conduzir," disse eu, a desculpa a soar oca até para mim.
"Mesmo assim. A maioria dos carros tem sistema de mãos-livres. E vinte e sete chamadas... é um número elevado para ser ignorado, mesmo a conduzir."
Ele olhou novamente para as suas notas.
"O seu filho foi diagnosticado com meningite bacteriana. O médico disse que cada minuto contava. Se ele tivesse chegado ao hospital trinta minutos mais cedo..."
Ele não precisou de terminar a frase.
O ar saiu dos meus pulmões.
Trinta minutos. O tempo que o Pedro demorou a atender a emergência de outra pessoa. O tempo que roubou ao nosso filho.
"Obrigado, Dona Helena. Por agora é tudo. Entraremos em contacto se precisarmos de mais alguma coisa."
Levantei-me, as minhas pernas tremiam.
Quando saí da esquadra, o sol brilhava. O mundo continuava a girar, indiferente.
Peguei num táxi. Não tinha para onde ir.
"Para onde, senhora?" perguntou o motorista.
Dei-lhe o único endereço que me veio à cabeça. A casa da minha amiga Ana. A única pessoa que me restava.