O cheiro de fumo acordou-me.
Abri os olhos, a garganta a arranhar, o quarto cheio de uma névoa cinzenta e espessa.
Fogo.
O alarme de incêndio soava, um grito agudo e incessante que se misturava com os gritos lá de baixo.
"Marcos!", gritei, sentando-me na cama com o coração a bater descontroladamente.
A minha mão foi instintivamente para a minha barriga de oito meses. O bebé agitou-se, como se sentisse o meu pânico.
Tateei o lado dele da cama. Vazio. Frio.
Levantei-me, tonta, e fui até à porta do quarto. Estava quente ao toque.
"Marcos! Onde estás?"
A minha voz era um sussurro rouco.
Ouvi a voz dele lá de baixo, não em pânico, mas urgente.
"Laura, por aqui! Rápido! A escada principal está bloqueada!"
Laura. A amiga de infância dele. A sua ex-namorada que nunca desapareceu realmente das nossas vidas.
Ela estava aqui em casa. Hoje.
Um frio percorreu-me, mais assustador que o calor do fogo.
Corri para a janela, tentando abri-la. Estava emperrada. O fumo tornava-se mais denso, queimando os meus pulmões.
Bati no vidro com as mãos.
"Socorro! Eu estou aqui em cima!"
Consegui ver o jardim lá em baixo. Vi o meu marido, Marcos, a empurrar a Laura para fora da porta das traseiras, para a segurança do relvado.
Ele olhou para cima, os nossos olhos encontraram-se por um segundo através do fumo e do vidro.
Vi pânico no rosto dele. Mas ele não se moveu na minha direção.
Ele agarrou o braço da Laura, que estava a tossir dramaticamente, e afastou-a mais da casa.
"Fica aqui, não te mexas!", gritou ele para ela.
Depois, virou-se e correu de volta para a casa em chamas.
Um alívio inundou-me. Ele vinha buscar-me. Ele não me tinha esquecido.
Esperei, a tossir, os olhos a arder. Cada segundo parecia uma eternidade.
Então, ele emergiu novamente das chamas.
Sozinho.
Nas suas mãos, ele não me trazia. Ele carregava a caixa de joias antiga da sua mãe e um álbum de fotografias.
Ele colocou os objetos preciosos ao lado da Laura, que agora chorava nos braços da minha sogra, que tinha aparecido a correr da casa de hóspedes.
Ele nem sequer olhou para cima outra vez.
Foi nesse momento que o som das sirenes se tornou mais alto. Os bombeiros estavam a chegar.
Foi também nesse momento que eu percebi.
Ele não ia voltar por mim.
Ele salvou a Laura, salvou as memórias da sua família.
E deixou a sua mulher grávida para morrer.
O mundo começou a ficar escuro. A última coisa que ouvi antes de desmaiar foi o som de vidro a partir-se.