Tentei ligar ao Pedro novamente, mas a chamada foi direta para a caixa de correio.
Ele tinha desligado o telemóvel ou bloqueado o meu número.
Uma risada amarga escapou dos meus lábios.
Claro que sim. A Helena precisava dele. A preciosa Helena.
Liguei para o quartel do Miguel, para o número do Sargento Costa. A voz dele era grave e respeitosa.
"Senhora Almeida, as minhas condolências. O seu irmão era um homem corajoso."
"Eu quero vê-lo", repeti, a minha voz mais firme desta vez.
Houve uma hesitação. "O procedimento normal... leva algum tempo. A autópsia..."
"Eu não me importo com o procedimento", interrompi. "Ele é o meu irmão. Eu preciso de o ver. Agora."
O sargento suspirou. "Muito bem. Estarei à sua espera na morgue central."
Vesti as primeiras roupas que encontrei e saí de casa. Não me preocupei em trancar a porta. Nada lá dentro importava mais.
A morgue era um lugar frio e estéril. O cheiro a antisséptico era avassalador.
O Sargento Costa, um homem de meia-idade com um rosto cansado, guiou-me por um corredor silencioso.
Parámos em frente a uma porta de metal.
"Tem a certeza disto, senhora?" perguntou ele gentilmente.
Eu apenas assenti.
Ele abriu a porta.
Miguel estava deitado numa mesa de metal, coberto por um lençol branco.
O sargento puxou o lençol lentamente para trás, revelando o rosto do meu irmão.
Estava pálido, mas parecia em paz. Os seus olhos estavam fechados, como se estivesse apenas a dormir.
Havia um pequeno ferimento de bala limpo na sua testa. Rápido. Pelo menos tinha sido rápido.
Estendi a minha mão trémula e toquei na sua bochecha fria.
Não havia calor. Não havia vida.
As lágrimas que eu tinha segurado finalmente caíram, quentes e silenciosas, no meu rosto.
"Ele salvou a refém", disse o Sargento Costa, quebrando o silêncio. "Ele empurrou-a para fora do caminho e levou o tiro que era para ela. Ele morreu instantaneamente."
Então era assim. Ele tinha-se sacrificado por ela. Pela Helena.
"Obrigada por me deixar vê-lo", disse eu, a minha voz embargada.
"É o mínimo que podíamos fazer. Ele falava muito de si. Dizia que tinha de cuidar da sua irmã mais nova."
Mais lágrimas. O Miguel sempre cuidou de mim, desde que os nossos pais morreram num acidente de carro há dez anos. Ele era tudo o que eu tinha.
Enquanto eu estava ali, a chorar silenciosamente sobre o corpo do meu irmão, o meu telemóvel tocou.
Era a mãe do Pedro, a Dona Laura.
Hesitei, mas atendi.
"Sofia, querida! O Pedro contou-me o que aconteceu. Que tragédia terrível!" A voz dela soava simpática, mas havia algo de errado.
"Obrigada, Dona Laura."
"Mas, graças a Deus, a nossa Helena está segura. Foi tudo graças ao teu corajoso irmão. Estamos todos muito gratos."
"Sim."
"O Pedro disse que estavas um pouco chateada. Querida, não podes culpá-lo. Ele está a passar por muito stress. Ver a irmã dele assim... foi horrível."
Eu não disse nada.
"O importante é que a Helena está bem. O Miguel não gostaria que ficasses zangada com o Pedro por causa disto. Ele fez um sacrifício nobre."
Um sacrifício nobre.
Eles continuavam a usar essa palavra. Como se isso tornasse a morte dele aceitável.
"Dona Laura, eu preciso de desligar."
"Espera, Sofia! Sobre o casamento... com esta tragédia, talvez devêssemos adiar um pouco? Dar tempo para todos se recuperarem. A Helena, especialmente, vai precisar de muito apoio."
O choque percorreu-me. Adiar o casamento?
Não por minha causa. Não pelo meu luto. Mas pela Helena.
"Não se preocupe, Dona Laura", disse eu, a minha voz fria como gelo. "Não haverá casamento."
Desliguei antes que ela pudesse responder.