A voz do Ricardo era como óleo a ser derramado sobre um fogo.
Ingrata. Egoísta.
Estas eram as palavras que ele usava para me descrever desde que eu era criança.
"Devolve o telefone à minha mãe," disse eu, a minha voz gelada.
"Ela não precisa de falar com uma filha que não tem respeito pela família! O Pedro é um bom homem, demasiado bom para ti! Devias estar de joelhos a agradecer por ele te aturar!"
Ele desligou-me o telefone na cara.
Fiquei a olhar para o ecrã escuro, o meu peito a apertar.
A minha mãe. Ele estava a magoar a minha mãe por minha causa.
Entrei no meu carro, joguei o troféu no banco do passageiro e conduzi para casa.
O apartamento estava escuro e silencioso. O lugar do Pedro na garagem estava vazio.
Ele ainda não tinha voltado.
Fui para o nosso quarto e comecei a fazer as malas. Roupas, livros, os meus esboços de arquitetura.
Cada item era uma memória. O nosso primeiro encontro, o nosso casamento, as promessas que ele me fez.
Promessas de que me apoiaria sempre, de que o meu sonho era o sonho dele.
Mentiras. Eram todas mentiras.
Enquanto eu estava a dobrar uma das suas camisas que tinha ficado no meu lado do armário, o meu telefone vibrou.
Era uma mensagem de um número desconhecido.
Abri-a. Era uma foto.
Pedro e Sofia na cozinha dela. Ele estava atrás dela, as suas mãos a cobrir as dela enquanto cortavam legumes juntos. A cabeça dela estava inclinada para trás, a rir para ele. A expressão no rosto do Pedro era terna, um olhar que ele não me dava há muito tempo.
Abaixo da foto, uma legenda simples: "Família".
O meu coração parou de bater por um segundo.
Depois, o meu telefone tocou. Era o mesmo número. Hesitei, depois atendi.
"Olá?"
"Então, gostaste da foto?" A voz era da Sofia, doce e venenosa. "O Pedro é tão atencioso. Ele disse que o teu prémio não era assim tão importante. Apenas um pedaço de metal."
"O que é que tu queres, Sofia?"
"Eu? Eu não quero nada. Eu já tenho tudo. Tenho o meu pai, e agora tenho o teu marido. Ele ama-me, Ana. Ele sempre me amou. Tu foste apenas um erro conveniente."
"Tu és a mulher dele," continuou ela, a sua voz a pingar falsa simpatia. "Não devias ser tão egoísta. Ele só está a cuidar de mim. Não é isso que a família faz?"
Senti o meu estômago a revirar.
"Nós não somos família," cuspi eu.
"Oh, mas em breve seremos. O Pedro vai divorciar-se de ti e casar-se comigo. Vamos ter a nossa própria família, uma família de verdade."
Desliguei o telefone e atirei-o para a cama.
O ar no apartamento parecia pesado, sufocante.
Abri a janela, a precisar de ar fresco. O troféu no banco do passageiro do meu carro brilhou sob a luz da rua.
Um pedaço de metal.
Talvez eles tivessem razão.