Nos dias que se seguiram, a ausência de Leo foi um alívio. Ele não ligou, não mandou mensagens. Era como se eu já tivesse sido apagada da sua vida, o que, de certa forma, era verdade.
Enquanto a minha mãe tratava da papelada do hospital e do seguro, a minha mente vagueava por memórias que eu tinha tentado ignorar durante anos.
Lembrei-me do nosso primeiro aniversário de casamento. Eu tinha preparado um jantar especial. Leo ligou à última da hora.
"Amor, desculpa. A Sofia está a ter uma crise, o namorado dela acabou com ela. Tenho de ir ter com ela. Não me esperes acordada."
Ele não voltou para casa naquela noite.
Lembrei-me da vez em que fui promovida no trabalho. Queria celebrar. Ele disse que não podia, porque tinha prometido ajudar a Sofia a montar os móveis do seu novo apartamento.
"Ela não tem mais ninguém, Clara. Tu compreendes, certo?"
Eu sempre compreendia. Eu sempre desculpava. Eu engolia a minha desilusão e sorria, porque amava o homem que eu pensava que ele era, não o homem que ele realmente era.
A Sofia não era apenas a sua irmã, era o centro do seu universo. E a mãe deles, Helena, alimentava essa dinâmica. Eu era sempre a segunda opção, a pessoa que tinha de ser compreensiva, a que nunca podia ter necessidades.
O bebé tinha sido a minha última esperança. Pensei que um filho nosso mudaria tudo, que o faria finalmente ver-me, que nos tornaria uma família de verdade.
Que tola eu fui.
Uma semana depois de sair do hospital, contratei um advogado e enviei os papéis do divórcio para o escritório de Leo. A resposta dele foi imediata. Uma chamada furiosa.
"Estás mesmo a levar isto a sério? Depois de tudo o que passámos?"
"O que é que 'nós' passámos, Leo? Fui eu que passei pelo fogo, fui eu que perdi o bebé. Tu estavas numa festa."
"Pára de usar isso contra mim! Foi um acidente! As pessoas perdem bebés todos os dias, é triste, mas a vida continua!"
A crueldade das suas palavras deixou-me sem ar.
"A minha vida vai continuar sem ti. Assina os papéis, Leo."
"Nunca. Não te vou dar o divórcio. Vais acalmar-te e perceber o erro que estás a cometer."
Ele estava convencido de que isto era apenas um capricho, uma birra de uma mulher de luto. Ele não me conhecia de todo.
A minha mãe e eu fomos morar temporariamente para um pequeno apartamento alugado. O restaurante, a nossa única fonte de rendimento, era agora um monte de cinzas e dívidas. O seguro demoraria meses a pagar, se é que pagaria.
Estávamos no fundo do poço.
Uma tarde, alguém bateu à porta. Hesitei em abrir. Podia ser o Leo.
Mas não era. Era o bombeiro que me salvou. Ele não estava de uniforme. Usava calças de ganga e uma t-shirt simples. Tinha um sorriso tímido no rosto.
"Olá. Desculpe incomodar. O meu nome é Miguel. Eu era um dos bombeiros no... no incêndio. Só queria saber se estava bem. Vocês as duas."
Fiquei surpreendida.
"Estamos... a tentar ficar. Obrigada por ter vindo. E obrigada por... sabe... ter-nos salvado."
"É o meu trabalho", disse ele, encolhendo os ombros. "Ouvi dizer que o restaurante ficou completamente destruído. Eu também faço trabalhos de construção nas minhas folgas. Se precisarem de ajuda para avaliar os estragos ou para a reconstrução, sem compromisso, eu posso ajudar."
Ele estendeu-me um cartão. Era simples, com o seu nome e número.
"Obrigada, Miguel. Isso é muito amável da sua parte."
"De nada. Fiquem bem."
Ele virou-se para ir embora.
"Espere!", chamei. "Quer entrar para tomar um café?"
Ele sorriu, um sorriso genuíno que iluminou os seus olhos.
"Adoraria."
Naquele dia, pela primeira vez desde o incêndio, senti um pequeno vislumbre de algo que não era dor ou raiva. Era esperança.