Um dia, estávamos a peneirar os destroços do restaurante. Eu procurava por uma caixa de receitas da minha avó, a única coisa de valor sentimental que eu queria recuperar.
"Encontrei!", gritei, puxando uma caixa de metal queimada e torta de debaixo de uma viga carbonizada.
Quando a abri, as páginas estavam chamuscadas nas bordas, mas a maioria das receitas estava legível. As lágrimas que eu não tinha chorado pela perda do meu filho, do meu casamento, de tudo, começaram a cair.
Sentei-me no meio da destruição e chorei. Chorei pela avó que perdi, pelo bebé que nunca conheceria, pela vida que me foi roubada.
Miguel sentou-se ao meu lado em silêncio. Não disse uma palavra. Apenas ficou ali, a sua presença sólida era um conforto maior do que qualquer palavra poderia ser.
Quando finalmente parei, ele estendeu-me um lenço.
"Obrigada", murmurei, envergonhada.
"Estas receitas parecem importantes", disse ele, olhando para a caixa. "Podes reconstruir tudo a partir daqui."
As suas palavras eram simples, mas atingiram-me com força. Reconstruir. A ideia parecia impossível, mas vinda dele, soava como uma promessa.
Enquanto isso, Leo e a sua família não me deixavam em paz. Como ele se recusava a assinar o divórcio, o processo arrastava-se. A sua mãe, Helena, começou a espalhar rumores no nosso antigo bairro.
Dizia que eu tinha enlouquecido com a perda do bebé, que me tinha tornado instável e agressiva. Dizia que eu estava a ser ingrata com o seu filho perfeito, que tinha tentado ajudar-me.
Sofia publicava fotos nas redes sociais dela e de Leo, com legendas como "A apoiar o meu irmão neste momento difícil. A família está acima de tudo". Eles estavam a construir uma narrativa onde ele era a vítima e eu era a vilã.
Um dia, recebi uma carta do advogado de Leo. Ele estava a contestar o divórcio, alegando "sofrimento emocional" e exigindo que eu procurasse aconselhamento matrimonial antes de qualquer outra ação legal.
Era ridículo. Era uma tática para me desgastar, para me forçar a voltar.
Mostrei a carta a Miguel. Ele leu-a, o seu rosto endurecendo.
"Isto é assédio, Clara. Ele não pode fazer isto."
"O advogado dele diz que pode. Ele quer arrastar isto até eu desistir."
"Então não desistas", disse Miguel, com uma intensidade que me surpreendeu. "Luta. Tu és mais forte do que ele pensa."
Olhei para ele, para a sua fé inabalável em mim, uma estranha que ele mal conhecia.
"Porque é que estás a fazer isto? Porque é que nos estás a ajudar?"
Ele desviou o olhar por um momento, para as ruínas do nosso restaurante.
"Há alguns anos, perdi a minha mulher num acidente de carro. Eu estava a conduzir. Não foi minha culpa, mas... eu nunca me perdoei por não a ter conseguido proteger. Quando vos vi naquele fogo, presas... eu não podia deixar acontecer de novo. Ajudar-vos... ajuda-me a mim também."
A sua vulnerabilidade apanhou-me de surpresa. Naquele momento, a nossa ligação deixou de ser sobre um resgate e tornou-se algo mais profundo. Éramos duas pessoas magoadas a tentar encontrar uma forma de reconstruir.