Tudo Que A Tempestade Levou
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Capítulo 3 3

A manhã inteira passou num ritmo que eu não saberia descrever. Era como se eu tivesse me esquecido de quem fui antes de chegar ali e, ao mesmo tempo, não tivesse me tornado nada ainda. Só alguém que carregava caixas, conferia listas e tentava não pensar muito.

June ficou por perto, explicando coisas que eu não conseguia guardar na memória. Às vezes ela interrompia as instruções pra cumprimentar alguém, e nesses momentos eu aproveitava pra respirar. Eu não tinha certeza de como agradecer pelo cuidado dela sem parecer fraca.

Perto do meio-dia, a temperatura subiu ainda mais. Eu encostei num dos pilares do galpão, sentindo o suor escorrer pela nuca. Foi quando um homem de camiseta cinza e barba por fazer passou por nós, equilibrando um rádio na mão. Ele pareceu reparar em mim por um segundo, mas não disse nada. Só deixou o rádio em cima de uma mesa improvisada e se virou pra June.

"Tá funcionando de novo," disse ele, a voz firme, como quem já se acostumou a resolver problemas maiores do que os próprios limites. "Mas não muito alto. Deborah reclamou que atrapalha a fila."

June riu baixo. "Deborah reclama de tudo."

O homem lançou um meio sorriso. Então finalmente olhou pra mim, como se lembrasse que eu estava ali.

"Sou o Nico. Se precisar de alguma coisa, eu sou o coordenador." A palavra soou maior do que ele parecia confortável em carregar.

"Isabelle," murmurei.

"Bem-vinda," disse ele, simples. "Hoje vamos receber outro caminhão de suprimentos. Se quiser ajudar depois, avisa."

Assenti, sem saber se teria força pra mais nada naquele dia.

Ele saiu tão rápido quanto tinha chegado, e June me cutucou com o cotovelo.

"Ele parece sério, mas é boa gente. Vive dizendo que vai largar tudo e abrir uma banca de livros usados. Nunca vai fazer isso, claro."

"Por quê?"

Ela ergueu as sobrancelhas. "Porque, no fundo, ele gosta do caos."

Tentei imaginar gostar do caos e falhei. Eu só queria silêncio. Um silêncio que não me engolisse.

Quando saímos do galpão, o sol parecia mais próximo da terra do que nunca. O ar estava tão quente que chegava a doer. June me conduziu até um toldo onde distribuíam refeições. Várias pessoas esperavam na fila. Algumas carregavam sacolas rasgadas. Outras traziam crianças grudadas nas pernas.

Atrás dos balcões, uma mulher negra, de cabelos presos num lenço azul, organizava pratos e panelas com a precisão de quem já tinha alimentado gerações inteiras. Seu rosto tinha linhas fundas, mas seus olhos estavam alertas, atentos a cada detalhe.

"Essa é a Deborah," disse June, baixinho. "Ela cozinha pra cem pessoas como se fosse só pra família dela. E se você tiver juízo, vai tratá-la bem."

"Por quê?" perguntei, curiosa.

"Porque todo mundo aqui jura que ela sabe de tudo antes de acontecer," June respondeu, meio rindo. "Ela é tipo o oráculo do lugar."

No instante seguinte, Deborah ergueu o olhar e me encarou. Como se tivesse ouvido cada palavra.

"Você é nova," disse ela, a voz grave, sem perder o ritmo de servir arroz numa bandeja.

"Sou."

"Tem mãos boas pra trabalho," comentou, e seu tom não soava como elogio nem crítica - apenas certeza. "E uns olhos que ainda não decidiram se querem ficar."

Eu não soube o que responder. Só desviei o olhar, sentindo o rosto esquentar por dentro e por fora.

"Pode se sentar lá, se quiser," ela completou, indicando uma mesa de plástico coberta com um pano florido. "Vai precisar comer se quiser continuar de pé."

A comida tinha gosto de qualquer coisa, menos do que eu lembrava como almoço. Mas talvez fosse só eu que tinha desaprendido o sabor das refeições. Eu comia porque era necessário, não porque queria.

Na mesa ao lado, uma menina de cabelos castanhos muito lisos segurava uma boneca descabelada. Ela parecia ter uns nove anos, talvez dez, e me olhava como se tentasse adivinhar se eu ia falar com ela. Quando percebeu que eu a notava, apertou mais a boneca contra o peito e desviou o rosto.

June apareceu com duas garrafas d'água e se sentou na minha frente.

"A Gracie," explicou, apontando discretamente com o queixo. "Perdeu a casa. E... outras coisas."

"Ela tá com alguém?"

"Por enquanto, sim. Mas a família se separou quando vieram pra cá."

Eu mordi o lábio, uma culpa estranha crescendo no peito. Eu não tinha filhos. Nunca tive. E, ainda assim, aquilo me doía. Talvez porque fosse mais fácil sentir pena de alguém tão pequeno do que admitir que eu também me sentia perdida daquele jeito.

"Ela não fala muito," acrescentou June, bebendo um gole d'água. "Mas fica sempre por perto. Acho que observa todo mundo, como se quisesse entender quem vai ficar e quem vai sumir."

Eu abaixei os olhos pro prato vazio, sentindo uma emoção que não tinha nome.

"E você?" perguntei, tentando mudar de assunto. "Como veio parar aqui?"

June deu de ombros. "Longa história. Mas, resumindo, o mundo desmoronou e eu descobri que ficar em casa sozinha não ia resolver nada. Então vim. Faz sentido?"

Assenti, mesmo sem ter certeza.

Fazia sentido o bastante.

Mais tarde, depois que ajudamos a organizar um carregamento de cobertores, voltei pro ginásio. O teto alto parecia suspirar junto comigo. Sentei no colchão e fechei os olhos. Eu queria chorar, mas estava cansada demais até pra isso.

Talvez fosse isso que ninguém contava: não era só a perda material que esvaziava a gente. Era o esforço de continuar aparecendo todos os dias. De fingir que você ainda existe por dentro, mesmo quando tudo parece ter ficado lá atrás, na lama, num quintal onde nada mais era seu.

Eu me deitei devagar sobre o colchão emprestado e fechei os olhos. O ventilador rangia no teto como se também estivesse cansado de girar. Por alguns minutos, não pensei em nada - nem no passado, nem no futuro.

Só fiquei ali, respirando, com a sensação de que eu era só um corpo que ainda não sabia o que fazer com tanta ausência.

E, por enquanto, isso teria que bastar.

            
            

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