Tudo Que A Tempestade Levou
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Capítulo 4 4

Na manhã seguinte, acordei antes do sol. O calor ainda não tinha invadido tudo e, por alguns minutos, o mundo parecia menos pesado. Sentei no colchão, respirando devagar. Eu não sabia se aquilo era paz ou só cansaço profundo. Mas, de qualquer forma, era melhor do que a inquietação de ontem.

Quando saí do ginásio, o pátio ainda estava quase vazio. Só algumas pessoas carregando baldes, ajeitando lonas que tinham se soltado na madrugada. A brisa morna mexia as pontas do meu cabelo. Eu me peguei pensando que talvez fosse bom fazer alguma coisa antes que a cabeça recomeçasse a inventar perguntas sem resposta.

No galpão de mantimentos, June já estava de pé sobre uma pilha de caixas, conferindo etiquetas. Ela ergueu os olhos e me viu parada na porta.

"Você acorda cedo," comentou, sem sarcasmo, só constatando.

"Não gosto de ficar esperando o dia começar," falei antes de pensar. Era verdade. A espera sempre me pareceu pior do que qualquer tarefa.

June assentiu. "Ótimo. Tem bastante coisa pra ocupar sua mente."

Peguei uma prancheta na mesa e comecei a anotar quantidades, prazos de validade, destinos das doações. As horas passaram numa sucessão de movimentos pequenos que, de algum modo, devolviam um pouco de ordem ao mundo. Eu descobri que havia certo alívio em contar pacotes de arroz e separar enlatados. Era concreto, tangível. Não era uma memória. Não era arrependimento.

Em algum momento, percebi que June me observava com a expressão de quem está testando uma hipótese.

"Você trabalha bem," comentou. "Tem gente que chega aqui querendo ser salva. E tem gente que vem tentar salvar os outros pra não pensar nos próprios problemas."

"E eu?" perguntei, sem encará-la.

"Você parece só querer... continuar."

Soltei um suspiro que soou quase como um riso. "Talvez seja isso."

"Tudo bem também," disse ela. "Continuar é subestimado."

Eu não sabia se aquilo era um elogio, mas foi a primeira coisa em muito tempo que não soou como pena.

Mais tarde, depois que terminamos de descarregar um caminhão, sentei num caixote vazio, esticando as costas. A camiseta grudava na pele. O ar pesava nos pulmões. Ainda assim, havia um tipo estranho de satisfação ali - como se, depois de tanto tempo me sentindo inútil, eu tivesse voltado a ser alguma coisa.

Foi então que notei o homem empilhando tábuas do outro lado do pátio. Eu o reconheci de imediato - tinha visto seu rosto no dia em que cheguei, quando ele ajudava a descarregar caixas perto da entrada. O cabelo escuro preso na nuca, o jeito metódico de mover cada peça, tudo nele parecia ter sido guardado num canto da minha memória sem que eu percebesse.

Ele parou um instante para enxugar o suor com o antebraço. Então virou o rosto, e nossos olhos se cruzaram de novo.

Não durou mais que dois ou três segundos. Um reconhecimento silencioso, quase neutro. Mas, por algum motivo, senti um arrepio subir pela espinha, como se meu corpo se lembrasse dele antes que minha cabeça pudesse decidir o que aquilo significava.

O homem desviou o olhar primeiro. Voltou ao trabalho com a mesma concentração impessoal de antes.

"Esse é o Callum," disse June, como se lesse meus pensamentos. "Engenheiro civil. Veio ajudar com a parte estrutural."

"Ele não parece daqui," arrisquei.

"Não é," respondeu ela. "Escócia, eu acho."

Ficamos em silêncio, observando ele erguer mais uma tábua com calma metódica.

"Não fala muito," acrescentou June. "Mas trabalha até não aguentar mais."

"Por quê?"

Ela me lançou um olhar que não era exatamente curioso - mais como quem sabe que certas perguntas não têm resposta simples.

"Talvez pelo mesmo motivo que você," disse, num tom tranquilo. "Porque é mais fácil se ocupar do que lembrar."

Antes que eu pudesse responder, June se levantou. "Vamos. Deborah vai começar a servir o almoço, e se chegarmos tarde, sobra só arroz frio."

O refeitório já estava cheio de vozes e calor quando entramos. Deborah estava atrás do balcão, mexendo uma panela que parecia grande o bastante pra alimentar um exército. Quando me aproximei, ela ergueu o olhar e me mediu com aquele jeito que fazia parecer que enxergava mais do que dizia.

"Você acordou cedo," comentou, repetindo as palavras que eu já tinha ouvido de todo mundo naquele dia.

"Queria ajudar," respondi, sem saber por que me justificava.

"É bom," disse ela, servindo uma concha generosa de ensopado no meu prato. "Mas não esquece que descansar também conta."

Assenti, tentando acreditar nisso.

Sentei numa mesa perto da janela aberta. O cheiro de comida misturado ao vento quente me lembrou de almoços antigos que já não pertenciam a ninguém. Enquanto eu comia, vi Callum entrar no salão. Ele caminhou até Deborah, falou alguma coisa que não consegui ouvir, e ela apontou para uma pilha de caixas ao fundo. Ele só assentiu antes de se afastar.

Era estranho notar tanto alguém que eu não conhecia. Mas havia algo no modo dele se mover - sem pressa, sem se exibir, como se carregasse um cansaço antigo que eu reconhecia - que me fazia prestar atenção.

Engoli o último pedaço de pão e respirei fundo. Eu não tinha planos de me aproximar. Não ainda. Talvez nunca. Mas, de algum jeito, a presença dele tornava o lugar menos anônimo. Mais humano.

Depois do almoço, June me arrastou para ajudar a catalogar um carregamento de roupas. Passamos a tarde dobrando calças, separando camisetas, etiquetando pilhas intermináveis. Meus ombros doíam, mas não reclamei. Pela primeira vez em semanas, minha mente parecia menos cheia de vozes.

Quando finalmente paramos, o sol já baixava, tingindo tudo de dourado. Eu estava suada, exausta, mas havia uma pequena chama no peito - como se, no meio daquela rotina improvisada, eu estivesse reaprendendo a existir.

June deu um tapinha no meu braço. "Fez um bom trabalho hoje."

"Obrigada."

"Vai ficando mais fácil," disse ela. "Não necessariamente melhor, mas... mais suportável."

Eu quis acreditar nisso. Talvez, se repetisse baixinho todas as noites, acabasse sendo verdade.

Na volta pro ginásio, passei por Callum empilhando tábuas ao lado de Nico. Eles conversavam em voz baixa. Callum levantou os olhos, só por um instante. Não sorriu. Não pareceu surpreso.

Apenas me olhou.

E eu... não desviei o olhar dessa vez.

Era um gesto pequeno. Mas, pra mim, parecia já ser alguma coisa.

            
            

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