Levantei-me devagar, minha altura me dando uma vantagem sobre ela. Olhei ao redor, para os rostos curiosos e julgadores dos outros passageiros.
"Esta mulher", comecei, minha voz alta e clara, projetada para que todos ouvissem, "e a família dela estão me assediando desde que entrei no trem."
Um murmúrio percorreu o vagão. Os olhos se voltaram de mim para Dona Lúcia, que pareceu genuinamente chocada com a acusação.
"O quê? Isso é um absurdo! Eu só pedi ajuda!", ela exclamou, colocando a mão no peito como se estivesse ofendida. "Essa menina é louca!"
"Ela queria que eu trocasse de lugar com o filho dela", continuei, apontando para João, que nos observava com um olhar vago, mas com um brilho de interesse malicioso. "Ela insistiu, me tocou sem permissão e depois usou o neto para me provocar, jogando o brinquedo debaixo do meu assento de propósito."
"Mentira! É tudo mentira!", a velha gritou, a voz começando a ficar esganiçada. Ela agarrou o braço de Pedrinho. "Olha o que você fez! Ele está apavorado!"
Pedrinho, um ator nato como a avó, começou a soluçar de forma dramática, escondendo o rosto na saia dela.
"Eu não conheço essa família", afirmei com firmeza, olhando para os outros passageiros. "E eu não quero ter nada a ver com eles. Aconselho a todos que fiquem longe deles também. Eles não são o que parecem."
Minhas palavras pairaram no ar. Alguns passageiros pareceram confusos, outros céticos. Uma mulher algumas fileiras à frente me olhou com desaprovação. A imagem da velha senhora indefesa era poderosa.
Dona Lúcia viu a dúvida nos olhos das pessoas e aproveitou a oportunidade. As lágrimas começaram a rolar por seu rosto enrugado.
"Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso?", ela soluçou, o corpo tremendo. "Sou só uma idosa tentando levar meu filho doente e meu neto para casa. Nós não temos nada. E essa moça nos trata como lixo. Por quê? Só porque somos pobres?"
A acusação de preconceito social era uma jogada de mestre. Imediatamente, a maré da opinião pública começou a virar contra mim. Vi olhares de pena se voltarem para a velha, e olhares de reprovação se voltarem para mim.
Eu precisava de um aliado. O chefe de trem.
"Com licença!", chamei em voz alta, ignorando as lágrimas de crocodilo de Dona Lúcia. "Chefe de trem! Eu preciso de ajuda aqui!"
Um homem uniformizado, que estava na outra ponta do vagão, começou a caminhar em nossa direção, a expressão cansada de quem já viu de tudo.
"O que está acontecendo aqui?", ele perguntou, a voz grave.
Dona Lúcia foi a primeira a falar, sua voz embargada pelo choro.
"Senhor, essa moça... ela está nos atacando. Quebrou o brinquedo do meu netinho e está nos acusando de coisas horríveis. Nós não fizemos nada!"
O chefe de trem me olhou, a sobrancelha erguida. "Senhorita?"
Respirei fundo, mantendo a calma. "Senhor, essa família está me importunando. Eu recusei um pedido para trocar de lugar, e desde então eles não me deixam em paz. A mulher me tocou, a criança me provocou. Eu me sinto ameaçada."
"Ameaçada?", o chefe de trem repetiu, cético. Ele olhou para a velha chorosa, para o homem com deficiência e para a criança soluçando. "Por eles?"
"Sim", eu disse, firme. "A aparência deles é enganosa. Eu quero ser movida para outro assento. Longe deles."
O chefe de trem suspirou. Era claro que ele via isso como uma briga boba de passageiros.
"Olha, senhora", disse ele para Dona Lúcia, com um tom apaziguador. "Por favor, sente-se e acalme seu neto." Depois, virou-se para mim. "E você, senhorita, tente ter um pouco mais de paciência. É uma viagem longa."
Era a indiferença que eu esperava. A mesma indiferença que permitiu que eles me sequestrassem na outra vida.
Nesse momento, uma passageira, a mesma que me olhava com desaprovação, se levantou. Era uma mulher de meia-idade, bem vestida.
"Com licença, chefe", disse ela. "Eu vi tudo. A moça está exagerando. A senhora só pediu ajuda. A menina foi extremamente rude e depois quebrou o brinquedo da criança de propósito. Foi um ato de pura maldade."
Dona Lúcia olhou para a mulher com gratidão. "Obrigada, minha senhora. Deus a abençoe."
A situação estava ficando fora de controle. Eu estava sendo pintada como a vilã.
"Isso não é verdade!", protestei. "Vocês não entendem o que eles..."
"Chega!", o chefe de trem disse, a paciência esgotada. "Vou resolver isso."
Ele se virou para Dona Lúcia. "Senhora, quanto custou o brinquedo?"
A velha fungou. "Não sei... uns vinte reais, talvez? Mas não é pelo dinheiro, é pelo sentimento..."
O chefe de trem tirou a carteira do bolso, pegou uma nota de vinte reais e a estendeu para ela.
"Aqui. Considere o assunto encerrado. E, por favor, não incomodem mais os outros passageiros."
Dona Lúcia pegou o dinheiro, os olhos brilhando de triunfo. "Obrigada, senhor. O senhor é um homem bom."
Ela se sentou, afagando a cabeça de Pedrinho, que parou de chorar instantaneamente e olhou para a nota de vinte reais na mão da avó com um sorriso ganancioso. O teatro havia acabado. Eles venceram a primeira batalha.
O chefe de trem se virou para mim. "E a senhorita, fique no seu lugar e não cause mais problemas."
Ele se virou e foi embora, deixando-me sozinha, cercada pelos olhares de julgamento dos outros passageiros. Eu me senti humilhada, furiosa e isolada.
Sentei-me, o rosto queimando. Dona Lúcia me lançou um olhar por cima do ombro. Era um olhar vitorioso, cruel e cheio de desprezo. Ela tinha ganhado. Ela tinha me neutralizado, me transformado na agressora aos olhos de todos. Agora, se eu tentasse algo, ninguém acreditaria em mim.
Mas o que ela não sabia era que isso não era o fim. Era apenas o começo. Ela me subestimou. Ela pensou que eu era apenas uma garota irritada. Ela não sabia que eu era uma sobrevivente em busca de vingança.
E eu não precisava que os outros passageiros acreditassem em mim. Eu só precisava de tempo. E de provas.
Peguei meu celular discretamente sob o casaco. Abri o aplicativo de gravação de áudio e o deixei ligado. A próxima vez que eles falassem, eu estaria gravando.
A guerra estava longe de terminar. E eu ainda tinha muitas armas para usar.