Levantei-me, peguei minha mochila e caminhei com determinação pelo corredor, ignorando os olhares e os cochichos. Fui direto ao vagão-restaurante. Era um espaço mais aberto, com funcionários circulando constantemente. Mais seguro.
Pedi um café e me sentei em uma mesa no canto, de costas para a parede, com uma visão clara de quem entrava e saía. O alívio foi imediato. O ar ali parecia mais limpo, longe da atmosfera tóxica que aquela família criava.
Enquanto tomava o café, minha mente trabalhava freneticamente. Eu não podia simplesmente ficar sentada esperando o trem chegar ao destino. Eles sabiam que eu estava no trem. Eles me queriam. Eles viriam atrás de mim. A recusa inicial e o confronto público não os fariam desistir, apenas os deixariam mais irritados e determinados. Eles eram predadores, e eu era a presa que havia revidado. Isso feria o orgulho deles.
Tirei meu celular da bolsa. A gravação de áudio ainda estava ativa. Poupei a bateria e parei a gravação por enquanto. Abri o contato do meu irmão, Marcelo. Pensei em ligar, em contar tudo. Mas o que eu diria? "Oi, irmão. Estou revivendo o dia em que fui sequestrada e estou tentando impedir que aconteça de novo." Ele me internaria.
Não. Eu precisava de provas concretas. Algo que a polícia e meu irmão não pudessem ignorar.
Minha mente de estudante de psicologia começou a analisar a situação não como uma vítima, mas como uma pesquisadora. Dona Lúcia usava a aparência de fragilidade e a manipulação emocional. João era a força bruta, a ameaça física. Pedrinho era a isca, a ferramenta para criar distração e culpa. Era um sistema familiar disfuncional e criminoso, perfeitamente orquestrado.
Eles se baseavam na boa vontade e na culpa social das pessoas. Minha tarefa era expor a mecânica por trás da fachada.
Fiquei no vagão-restaurante por quase uma hora. Ninguém apareceu. Comecei a pensar que talvez eles tivessem desistido. Talvez meu confronto os tivesse assustado. Que pensamento ingênuo.
Foi então que ouvi a voz dela.
Dona Lúcia entrou no vagão-restaurante, segurando Pedrinho pela mão. Ela não me viu. Passou direto pela minha mesa e foi até o balcão. João não estava com ela.
"Moço, você viu uma menina de cabelo castanho, com uma blusa azul?", ela perguntou ao atendente, a voz cheia de uma falsa preocupação. "Minha sobrinha. Ela é um pouco... confusa. Se perdeu de nós. Estamos muito preocupados."
O atendente balançou a cabeça. "Não, senhora. Não reparei."
"Ah, meu Deus", ela suspirou, parecendo desolada. "Ela é tão jovem, não conhece o mundo. Sou a única família que ela tem."
Meu sangue gelou. Ela estava criando uma nova narrativa. Agora eu era a "sobrinha confusa". Se ela me encontrasse e fizesse um escândalo, quem os outros acreditariam? Na tia preocupada ou na sobrinha "problemática"?
Discretamente, peguei meu celular e ativei a câmera, posicionando-a de forma que pudesse filmá-los por cima da borda da mesa.
Pedrinho puxou a saia da avó. "Vovó, cadê o tio João?"
"Shhh", ela sussurrou, mas eu pude ouvir. "O tio João foi procurar a moça nos outros vagões. Nós vamos achá-la, não se preocupe. Ela vai ser uma boa esposa pro seu tio. Vai cuidar de nós."
A confissão. A confirmação do plano. Dita em um sussurro, mas captada pelo microfone do meu celular. Um arrepio percorreu meu corpo, mas não era de medo. Era de triunfo. Eu tinha. Eu tinha a prova.
Dona Lúcia comprou um salgado para Pedrinho e se virou para procurar uma mesa. Seus olhos passaram por mim, pararam e se arregalaram. Ela me encontrou.
Por um instante, o pânico brilhou em seu rosto. Ela não esperava me encontrar ali, calmamente observando-a. A máscara de preocupação caiu, e eu vi a raiva pura em seus olhos. Ela abriu a boca para dizer algo, mas se conteve. O atendente estava olhando.
Ela me lançou um olhar que prometia dor e caminhou para a outra ponta do vagão, sentando-se de costas para mim. Ela começou a falar com Pedrinho em voz baixa e urgente. Eu continuei filmando.
Alguns minutos depois, João apareceu na porta do vagão. Ele parecia um animal farejando uma presa. Seus olhos percorreram o ambiente e se fixaram em mim. Um sorriso lento e feio se espalhou por seu rosto. Ele deu um passo para dentro do vagão, vindo na minha direção.
Meu coração acelerou. Mesmo com a câmera ligada, a ameaça física dele era real e imediata.
Mas antes que ele pudesse dar mais do que dois passos, um dos seguranças do trem, um homem grande e forte, entrou no vagão-restaurante para seu próprio café. Ele parou ao ver João, cuja aparência e comportamento eram claramente perturbadores.
"Algum problema aqui?", o segurança perguntou, a voz grave.
João parou, parecendo confuso com o obstáculo.
Dona Lúcia se levantou rapidamente e foi até ele. "Não, senhor, de jeito nenhum! Meu filho só estava me procurando. Vamos, João. Deixe o homem trabalhar."
Ela agarrou o braço de João e o puxou para a mesa dela, lançando um olhar mortal na minha direção antes de se sentar. Eles sabiam que não podiam fazer nada com o segurança ali.
Eu tinha conseguido um tempo extra. Mas a rede estava se fechando. Eles sabiam onde eu estava. E eles não iam desistir.
Parei a gravação e salvei o vídeo. Enviei imediatamente para o meu e-mail, para um serviço de armazenamento na nuvem e, em uma mensagem rápida, para o WhatsApp do meu irmão Marcelo, com um texto simples: "Marcelo, se algo acontecer comigo, veja isso. Não ligue ainda. Apenas assista."
Eu sabia que ele veria, ficaria preocupado e provavelmente tentaria ligar. Eu colocaria o celular no silencioso. Mas a semente estava plantada. A apólice de seguro estava ativada.
Agora, eu precisava sobreviver até a próxima estação. Olhei para a família sentada do outro lado do vagão. Eles estavam cochichando, planejando. Dona Lúcia olhava para o segurança, esperando que ele fosse embora.
A caçada ainda não tinha acabado. Eles apenas tinham sido temporariamente impedidos. E eu sabia que a próxima tentativa deles seria mais direta. E mais perigosa.